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PARA MEMÓRIA FUTURA

por Francisco Galego, em 22.07.13

(REPOSTO A PEDIDO DE LEITORES E APROVEITANDO PARA MUDAR O TÍTULO...)


Porque em tudo tem de haver momentos de interrupção para descanso, vou fazer uma pausa neste “Além Caia”.

Desejo a todos os que isto lerem, as melhores férias que puderem ter dadas as circunstâncias tão pouco tranquilizantes e propícias em que estamos a viver.

 

 

No passado dia 13, pelas 18.30h, fomos assistir à apresentação da recandidatura do Ricardo Pinheiro à Presidência da Câmara Municipal de Campo Maior. Eu a Júlia tínhamos sido convidados, com lugar reservado para assistir à sessão.

 

Quando estava ali, naquela cadeira, esperando pelos discursos que estavam programados, reparei que na fila à minha frente estava o Arménio, amigo de uma amizade que se começou a construir há quase 35 anos e que eu estava ali para assistir à recandidatura de um dos meus mais recentes amigos, um jovem engenheiro que conheço apenas desde os últimos quatro anos. Comecei então a lembrar como, nós os três, estamos relacionados com o acontecimento que agora ali nos juntava.

 

Há quatro anos atrás, já estivéramos numa sessão semelhante. Nessa altura estava a Júlia, também ela, candidata à Assembleia Municipal, para o mandato que agora vai terminar, tendo renunciado à possibilidade de se recandidatar.

Acho que faz bem. Sai com a consciência plena de ter cumprido exemplarmente com um desempenho de excelência e, por isso mesmo, algo esgotante. Mas, na verdade, nem ela nem eu sentimos gosto no exercício dos cargos políticos com tudo o que eles implicam e sem apreço pelas vantagens que alguns conseguem tirar dessa circunstância.

 

O Ricardo é um exemplo acabado do gosto inato pela acção política. É ver como ele “cresceu” durante os quatro anos do seu primeiro mandato como presidente da Câmara Municipal de Campo Maior. É notável o prazer e a realização pessoal que ele retira deste seu modo que, felizmente não tem mudado, de entender a política como serviço público. E nota-se que o assume em plena consciência e com toda a integridade. Aliás, esse sentimento revela-se quando ele afirma que ainda não se considera um político mas, mais propriamente como alguém que foi escolhido para ser um gestor dos assuntos que implicam o bem comum e a realização do que lhe parece ser o interesse público. Sem o explicitar claramente, faz, à sua maneira, a distinção entre POLÍTICA e politiquice.  

Que os deuses lhe conservem este carácter de integridade ética e de consciência cívica e social que até agora tem mantido, com todo o rigor e com meridiana clareza.

 

Ouvindo-o ontem fui levado a recordar factos em que me vi envolvido há quatro anos atrás.

O Arménio Toscano tinha-me já falado da sua decisão de se candidatar à Presidência da Câmara. Fiquei contente por saber que se tratava de um sonho acalentado por ele desde há muitos anos. Tinha a convicção que ele poderia ganhar e desejava-o, não apenas por amizade, mas porque considerava, como coisa muito urgente e necessária, que Campo Maior devia libertar-se da gestão ruinosa, populista, degradante e demagógica que se instalara na vila, havia já mais de uma década.

Prometi-lhe de imediato toda a colaboração e ajuda que fosse necessária e que estivesse dentro das minhas competências e capacidades.

Passado algum tempo e com o arranque da campanha eleitoral já próximo, o Arménio comunicou-me que tinha tido um sério aviso de problemas cardiovasculares que o colocavam em risco de vida e que os médicos desaconselhavam vivamente que ele persistisse no projecto político em que estava à beira de se envolver. Percebi que a situação era mesmo grave quando me comunicou que ia renunciar a tudo para evitar agravar de forma irremediável as suas condições de saúde.

Sabia da importância que para ele assumiria o desempenho de tão ambicionado cargo. Por isso, esta situação deixou-me bastante penalizado. Era o fim do sonho de um amigo, mas era também o fim de um projecto sobre o qual eu tinha esperançosa expectativa.

No meu entender, não me parecia que houvesse alguém com capacidade para o substituir com igual vantagem.

De certo modo desinteressei-me do assunto, não porque o desvalorizasse mas porque, analisando racionalmente a questão, entendi que não havia possibilidade de lhe dar solução.

 

Passado algum tempo que não sei quantificar com precisão, estando nós a terminar o nosso almoço em casa, recebi um telefonema de João Manuel Nabeiro que me disse ter uma enorme urgência em nos falar, pedindo que fossemos almoçar com ele. Disse-lhe da dificuldade de corresponder ao convite, mas ele contrapôs que podíamos ir tomar um café e que, enquanto ele almoçava, podia expor-nos o que queria conversar connosco.

Claro que o inesperado da situação nos deixou curiosos e anuímos em fazer o que ele sugeria.

Logo que nos falou da situação em que a desistência do Arménio colocava o PS, á beira do processo de candidatura à autarquia, foi fácil abreviar explicações, dado que nós estávamos já conhecedores desse problema. Resumindo, ele queria que o ajudássemos a encontrar resposta a uma pregunta que se coloca com tal frequência e com tão grande premência aos que se embrenham no processo politico que um dos maiores políticos do século XX – Lenine – a deu como título a uma das suas obras mais significativas: QUE FAZER?

 

Francamente confesso que fiquei de tal modo sem saber como responder a tal questão, que lhe pedi que fosse comendo enquanto eu usaria esse tempo para poder pensar.

Comecei por explicar-lhe que, o facto de ter vivido tanto tempo fora de Campo Maior, me deixava pouco seguro de poder encontrar resposta adequada para o problema que me colocava. Mas que, dadas as circunstâncias, havia uma coisa que não poderia deixar de ser feita:

- Tinham de “IR A JOGO”.

 

Perante a perplexidade que lhe li na expressão, continuei a explicitar o que pretendia dizer: dada a situação difícil em que, a nível local, se colocava de momento o PS, este, sob pena de correr o risco de se “apagar” da cena política durante um tempo, provavelmente bastante longo, teria de se apresentar com candidatos próprios, mesmo que fosse para perder.

A pergunta que se seguiu foi: Pois sim! … Mas, com que “cabeça de lista”?

Eu sabia das dificuldades em que o partido ficara por ter estado tanto tempo dominado por aqueles que, servindo-se dele – dos seus símbolos e das suas estruturas organizativas – tinham aliciado ou afastado os quadros mais significativos do antigo PS local. Além disso, tinham instalado uma maneira de conceber e exercer a acção política que urgia combater e aniquilar. Entendia que era essa a finalidade mais urgente da lista que agora se pretendia apresentar a uma eleição. Tanto mais que se partia em situação de desvantagem, com uma expectativa muito desfavorável, contra adversários que estavam muito implantados, pois dominavam há muito tempo o poder político a nível local. 

Logo a questão do “COM QUEM À CABEÇA? ” tornava-se central dada a sua importância simbólica.

 

Ocorreu-me de repente uma ideia que atirei timidamente para a conversa:

“Mas, se a vossa família tem, nas vossas empresas, o que de melhor existe neste concelho, em termos de “capital humano” e de “massa crítica”, porque não procurar um jovem que pareça competente, convindo mesmo que não tenha experiência política?

Assim, ainda que não ganhe desta vez, ficará treinado e motivado para adquirir saber e experiência para poder vencer numa próxima eleição. Com a vantagem de não estar corrompido ou formatado para uma maneira pouco recomendável de fazer política”.

 

Pareceu-me uma maneira muito adequada para iniciar um projecto novo e uma nova maneira de intervir na vida política local. Havia ainda a vantagem de se tornar difícil para os adversários atacar alguém que, não tendo passado político, não tinha pontos fracos conhecidos que contra ele pudessem ser usados. Por outro lado ainda, parecer-lhes-ia a situação tão frágil que nem precisariam de se empenhar muito para vencerem com grande vantagem.

 

Pareceu-me que o meu interlocutor tinha ficado entre hesitante e perplexo. Contudo, iria apresentar a minha sugestão. Com surpresa minha, passados poucos dias comunicou-me que seu pai achara interessante a sugestão e que já tinha mesmo um nome que correspondia àquilo que estava em questão. Disse-me o nome de um jovem engenheiro – Ricardo Pinheiro – que eu não conhecia e que por isso me abstive de comentar.

Achei a situação interessante e resolvi acompanhar o processo que, a nível político, se foi tornando um dos casos mais estimulantes em que, quase sem dar por isso, acabei por me achar envolvido.

 

Porque sei que, muitas vezes, não são os que plantaram as árvores os que lhes vêm colher os frutos, devo referir de passagem que foi também João Manuel Nabeiro quem teve a ideia e tomou a iniciativa de convidar a Júlia para liderar o grupo de candidatos do PS à Assembleia Municipal. Segundo os resultados obtidos na votação, poderia ter sido eleita para presidir à mesma assembleia, não fora a inesperada e desleal falha de um dos eleitos ao compromisso previamente assumido.

 

Foi assim que, há quatro anos atrás, no mesmo local onde estávamos reunidos para assistir à apresentação de um jovem que alguns não conheciam e muitos nem acreditavam que pudesse ter sucesso no projecto a que se aventurava, pois que, embora fosse grande a vontade de mudança, a expectativa de sucesso não era muito segura.

E essa fragilidade da nossa expectativa reflectia-se na própria maneira como a sessão de apresentação do candidato fora configurada.

A nível do partido socialista, vieram algumas figuras com algum relevo a nível regional. Mas um figurão da política, a nível regional e nacional, fez questão de nunca acertar no nome do candidato que estava a apresentar, chamando-lhe vários nomes de árvores sem nunca acertar no “pinheiro” que era a árvore certa para o designar. Isto que foi parodiado pela maioria da assistência, tinha efectivamente a intenção de sublinhar a fraqueza do candidato, um jovem de quem não se podia esperar muito pois, de tão desconhecido e inesperado, nem sequer se conseguia fixar-lhe o nome.

Na época também me foi dito que o responsável por uma empresa contratada para dar apoio à candidatura dizia aos seus colaboradores que não valia a pena empenharem-se a fundo porque o caso “Campo Maior” estava condenado à partida a ser “caso perdido”.

Não foi assim pois que, ainda que com grande dificuldade, o jovem engenheiro ganhou ao veterano, sabidão e matreiro, que era considerado o outro candidato.

 

Agora, passados quatro anos, as coisas mudaram de tal modo que o jovem candidato sem estatuto para se lhe fixar o nome, tornou-se um sério candidato que mereceu a presença de uma importante personalidade como a Presidente Nacional do Partido Socialista, Dra. Maria de Belém, por ter sido impossível ao secretário-geral do partido estar presente, por estar envolvido na urgência de resolução da crise que o país atravessa. Mereceu também ter sido entusiasticamente elogiado pelo deputado Pedro Marques que representa, pelo PS, este distrito no Parlamento e que fez questão de sublinhar que considerava o Ricardo Pinheiro um caso notável de sucesso na condução da política a nível autárquico.

 

Sic transit gloria mundi. Maneira erudita de dizer, em latim, que passam muito depressa certas certezas e vaidades mundanas.

Hoje podemos dar como certo que todos os que assistiram a esta sessão saberão de cor o nome do candidato Ricardo Pinheiro. Mas serão muito poucos os que ainda se lembrarão do nome do deputado que, há quatro anos, não conseguiu sequer fixar o nome do candidato que veio apresentar.

 

 

 

 

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Carnavais de outros tempos

por Francisco Galego, em 21.02.10

Depois do Carnaval, a Quaresma. Depois dos excessos e dos exageros, vem um tempo de sossego e de contenção.

Por temperamento, nunca fui de me envolver neste tipo de manifestações. Mas, nas minhas investigações, fui encontrado referências ao Carnaval de outros tempos e a maneira como era celebrado aqui, em Campo Maior. Por algumas notícias em antigos de jornais, pude aperceber-me das tradições carnavalescas que foram desaparecendo. Uma delas que eu ainda conheci, em tempos da primeira adolescência, antes de sair da vila, era o famoso baile da pinhata. As coisas passavam-se, mais ou menos, do seguinte modo: à mocidade, embalada pelos dias de folia, custava-lhe a despedida do Carnaval. Procurava, portanto, a todo o custo, prolongá-lo evitando mergulhar no período de abstinência que se ia seguir até à Páscoa. Por isso, no primeiro domingo da Quaresma, faziam-se, nas sociedades recreativas, os muito concorridos bailes da pinhata. Esta tradição que era bastante antiga, ter-se-á constituído por influência de Espanha. Penso assim porque me baseio numa notícia publicada num jornal de Elvas, O Transtagano, de 24 de Fevereiro de 1861, onde li o seguinte: este é o nome que tem o baile de máscaras que, no reino vizinho, pelo menos em Badajoz, costuma ter lugar no primeiro domingo de Quaresma. A dar fé neste documento, nessa época, a tradição dos bailes da pinhata ainda não estava implantada em Portugal.

Outra tradição carnavalesca a que ainda assisti foi a batalhas das flores de que encontrei uma preciosa descrição com mais de oitenta anos, no jornal O Campomaiorense que, numa notícia de 1923, descreve o Carnaval com bastante pormenor e numa linguagem bastante colorida. Esta batalha das flores poderá talvez ser considerada o antepassado dos actuais cortejos carnavalescos. Mas a outra, o enterro do carnaval, já não faz parte das minhas recordações. Na notícia que se transcreve parece haver uma continuação da marche aux flambeaux que encontrei descrita em jornais do século XIX. Proponho-vos a leitura da notícia:

“A época carnavalesca teve este ano um brilho desusado e que há muitos anos não tinha nesta vila … Fez-se uso dos saudosos pós pretos, malagueta queimada, talos de couve, águas sujas lançadas das janelas sobre os transeuntes, …esguichos e enfarruscadas…arremessaram-se ovos de cinza e até ovos de verdade…

No domingo e na terça-feira de Carnaval houve festivas batalhas de flores no corso elegante da Canada, onde uma enorme fila de algumas dezenas de coches, landaus, berlindas e cadeirinhas, volteavam para baixo e para cima num rodopio de carrossel. Deram viva nota os carros da elite feminina que se esmerou nas ornamentações a capricho e na confecção das toilettes garridas das senhorinhas. As crianças participaram como cúpidos, pierrots e pequenas fadinhas, animando o ambiente com a sua inocente alegria e as suas estridentes risadas.

Muitos caros artisticamente ornamentados, participaram neste cortejo, brincando-se muito por toda a parte, dos carros para as janelas e das janelas para rua, travando uma autêntica batalha de papelinhos, tremoços, violetas, rebuçados e bombons.

 Pelas ruas, mascarados sem conta, luzidias cavalgadas, paródias, cegadas.

Bailes em quantidade. Os que se realizaram em casa dos Srs. Viscondes de Olivã primaram pela distinção. Houve também bailes nas casas do Sr. Barbas, do Sr. José Ramos e na do Sr. João Martins Leitão, nos quais se dançou e cantou até altas horas da madrugada.

Os bailes no Teatro do Castelo foram espampanantes de entusiasmo e os concursos de máscaras provocaram grande entusiasmo. Dançou-se o foxtrot, o two-step, o jazz-band, bem como danças regionais e nacionais.

No Grémio brincou-se, riu-se e dançou-se. Disseram-se frases de espírito e esboçaram-se alguns namoros. Várias senhoras da nossa melhor sociedade cantaram árias e canções para deleite dos que as puderam escutar.

Quando o baile terminou – 8 da manhã! – já o sol doirado e brilhante se espraiava alegre e contente pelas ruas da vila.

Para em tudo ser completo, o Carnaval terminou no enterro do Entrudo com a sua imponência macabra e tétrica, como se pode ajuizar pelas centenas de fantasmas envoltos em lençóis brancos, formando duas longas filas, conduzindo tocheiros acesos, numa guinchadeira de pranto infernal…

Atrás o esquife funerário seguido pela banda que executava com muito sentimento e profunda mágoa a marcha fúnebre de Chopin…

De vez em quando o cortejo parava para ser entoada a magistral oração do bacalhau a pataco por um sumo-sacerdote de voz de cana rachada.

Acabou-se o Carnaval. O Entrudo ficou morto e enterrado. Que descanse em paz até ao novo ano.”

 

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Coisas que fui escrevendo XI

por Francisco Galego, em 15.09.09

 

Por gosto e por vocação fiz do estudo e do ensino da História o meu modo de vida. Mas o conhecimento da História não fez de mim um saudosista. Não choro o tempo que passou, nem exalto as suas “virtudes” perdidas. Eu sinto apenas uma imensa pena de já não poder viver o tempo que há-de vir pois tenho a convicção que ele será melhor do que o tempo que agora vivo. Parece-me ser esta a melhor e mais atilada maneira de entender as coisas importantes da vida.
É importante compreender o passado, pois o seu conhecimento ajuda-nos a entender como e porquê as coisas evoluíram num certo sentido. Mas a contemplação do passado tem qualquer coisa de mórbido que não nos deixa apreciar o lado bom da vida que nos cabe viver.
Todas as épocas tiveram os seus problemas e em todas elas isso foi motivo para alguns fazerem o choradinho de que “no meu tempo é que era bom”. O melhor e maior castigo que se lhes podia dar era fazê-los voltar a viver nesse tempo que só era bom porque é um tempo já passado. Por muito que por vezes nos pareça que não, o mundo vai evoluindo no sentido do seu progressivo aperfeiçoamento.
Tenho consciência dos problemas que, neste momento, preocupam e atormentam os meus filhos. As dificuldades que vivem e, sobretudo, as dificuldades que vêem os outros viverem. Mas se me ponho a comparar as minhas recordações com as suas vivências, acabamos por chegar à conclusão de que talvez as coisas não sejam tão más como, nos “bons velhos tempos”, foram.

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Coisas que fui escrevendo X

por Francisco Galego, em 10.09.09

 

O mundo mudou tanto no espaço de meio século que os homens e mulheres da geração a que eu pertenço, quando recordam o mundo da sua infância, constatam que esse mundo não existe mais. Meu pai nasceu e viveu num mundo muito semelhante àquele em que se pai e seu avô tinham vivido. Brincaram nos mesmos espaços e praticaram os mesmos jogos. Os jogos que eu próprio ainda conheci. Mas os meus filhos não tiveram já qualquer contacto com os jogos e brincadeiras que animaram a minha infância.
Nascido numa vila alentejana no início da última década da primeira metade do século vinte, o mundo da minha meninice era um mundo essencialmente rural. A população vivia, na sua quase totalidade, da agricultura e ocupava-se essencialmente no trabalho dos campos. A vila, embora tivesse rompido em vários sítios a cerca de muralhas a que a constrangera a sua função de praça de guerra, pouco tinha crescido nos últimos dois séculos. Todos se conheciam e, sobre cada um de nós, todos tinham amplas referências, bem como das famílias a que pertencíamos.
Por toda a vila as carroças e os apetrechos da agricultura eram uma presença constante. As carroças puxadas por burros ou por muares começavam a soar de manhã bem cedo ao saírem para os campos. Os automóveis contavam-se pelos dedos de uma só mão. Tractores, debulhadoras e outras máquinas agrícolas começaram a chegar já eu estava no fim da escola primária. Os candeeiros a petróleo eram a única fonte de luz da maior parte das casas. A electricidade era de fraca qualidade e muito atreita a avarias que por vezes deixavam a vila na mais negra escuridão durante dias seguidos; por vezes, semanas e meses.
Não falo de tudo isto por saudosismo. É uma tolice e uma grande hipocrisia falar dos “velhos tempos” como se dos bons tempos se tratasse. Os bons tempos são os do presente e os melhores tempos são provavelmente os do futuro que ainda estão para vir.
 

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Coisas que fui escrevendo IX

por Francisco Galego, em 05.09.09

Nasci aqui, em Campo Maior, vila raiana do Alto Alentejo, em plena Grande Guerra: a segunda, a de 1939 a 1945. Um conflito que envolveu homens de quase todas as nações e de todos os continentes. Pouco antes, do outro lado da fronteira, fora feito o ensaio geral, com a Guerra Civil de Espanha de 1936 a 1939. Ainda assisti aos efeitos tremendos dessa luta fratricida que dilacerou o povo espanhol, deixando um rasto de miséria que perdurou por muitos anos.

Comecei a tomar consciência das coisas da vida quando a vida era, de facto, muito difícil. Como tive a sorte de não ser dos menos afortunados, não sofri a tormentosa miséria em que vi crescer alguns dos meus companheiros. Tenho consciência plena de que, uma coisa é suportar a carência de quase todas as coisas necessárias a uma vida minimamente decente, outra é ter apenas de ver o sofrimento que essa carência impõe aos que a têm de sofrer.

A guerra é sempre um facto terrível. Mas esta, que estava em curso quando nasci, além dos aspectos tremendos de que se revestiu, teve a suprema importância de significar uma ruptura radical na evolução das sociedades humanas. Claro que as coisas não mudaram logo no tempo da guerra, tanto mais que não tivemos dela uma vivência directa. Mas os efeitos que ela implicou, desencadearam um processo acelerado de mudanças que não mais parou até aos dias de hoje.

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Coisas que fui escrevendo II

por Francisco Galego, em 30.07.09

 Vivemos hoje numa sociedade de informação. Tudo que aconteça em qualquer parte que seja do mundo, chega rapidamente ao nosso conhecimento. E o volume desses factos que diariamente até nós chegam é de tal ordem que nos assusta. Sabemos o que se está a passar numa cidade tão longínqua como São Paulo no Brasil. Se a  rádio, a televisão e os jornais nos dão a impressão de uma grande metrópole, com a dimensão de uma das maiores cidades do Brasil e do mundo, estar a ser desestabilizada por bandos organizados de marginais, naturalmente que isto nos assusta e somos naturalmente levados a pensar: O mundo está perdido! No meu tempo não era assim!

Provavelmente era ainda muito pior. Só que os nossos avós viviam num mundo em que a informação era muito escassa. Mal sabiam o que se passava nas vizinhas cidades de Portalegre ou de Elvas, quanto mais do que se passava no Brasil. Eles não ouviam rádio, coisa apenas acessível aos muito endinheirados. A televisão não existia. E, a maior parte deles, não poderiam ler os jornais porque … nem sequer sabiam ler.

Os jovens de hoje já nasceram num mundo diferente. A informação faz parte integrante do seu modo de viver. E se há jovens que se perdem nos descaminhos da vida, isso também acontecia nos tempos antigos, com a agravante de que os nossos  avós não tiveram tantas oportunidades como aquelas que estão a ser dadas aos nossos filhos e netos.

A grande maioria dos que nasceram em Campo Maior no tempo dos nossos avós tiveram apenas como oportunidade de vida, sem alternativa nem escolha, arrastarem-se numa vida de esforçado trabalho nos campos, com muito pouco conforto e com a presença constante de carências que hoje nem conseguimos imaginar.

Por mais que os problemas nos atormentem, mantenhamos a confiança num futuro melhor e na capacidade das novas gerações que irão construir esse futuro.

 

Post scriptum: Foi hoje a enterrar o Dr. Santos, um dos mais notáveis "João Semana" que me foi dado conhecer. Estava disponível 24 horas por dia, fosse para quem fosse, independentemente dos meios de fortuna ou da importância social e política dos que o solicitavam. Aos pobres nada levava. É sabido por muitos que, em muitos casos, até tirava do seu magro pecúlio para ajudar os que muito necessitavam.

Chegou a Campo Maior tinha eu nascido há pouco tempo e, até aos meus 30 anos, ele foi o médico que eu gostava de ouvir em todas as questões de saúde que se me deparavam. O meu filho mais velho ainda foi assistido por ele, nas suas breves permanências em Campo Maior.

Este algarvio de nascimento, tornou-se mais campomaiorense de coração que boa parte dos campomaiorenses. Não sei outra maneira mais directa de o homenagear que dizer dele esta frase simples: "Chegou a Campo Maior há mais de 60 anos, muito pobre, e partiu hoje a enterrar no cemitério da terra da sua adopção, tão pobre como chegou".

Não era apenas disponível, era também de um elevado nível de competência. Aos seus conhecimentos de clínico e à sua larga experiência, associava uma especial intuição para perceber as razões psicológicas que, em muitos casos, estavam por detrás dos males físicos de que os pacientes se queixavam.

Gostava muito de o ouvir dissertar sobre a sua vida de médico, o entranhado amor aos pais e a outra paixão da sua vida que eram os touros e as touradas, único vício que o levava a percorrer quilómetros em procura de uma boa faena.

Que repouse em paz, este grande (de corpo e de alma) homem e médico que, embora da idade de meu pai, eu sempre entendi como um grande amigo, capaz de mostrar ternura ralhando, quando entendia que eu não me portava a preceito, como ele desejava.

 

Requiescat in pace, grande amigo deste povo.

 

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Coisas que fui escrevendo I

por Francisco Galego, em 25.07.09

 

Se defendo a aposta nas novas gerações é porque, além de ter convivido com elas durante quase toda a minha vida, entendo que é nos mais jovens que devemos procurar lançar os alicerces de projectos que gostaríamos que perdurassem no tempo. Afinal são eles que cá estarão no futuro próximo.
Muitos são os que pensam que não vale a pena apostar nos jovens porque estes não se interessam por nada que mereça ser devidamente considerado. Com o devido respeito, permitam-me afirmar que não há nada mais errado do que assim pensar.
Nas novas gerações há certamente atitudes de desvario que merecem ser censuradas. Ninguém de bom e perfeito juízo será capaz de negar tal evidência. Mas, provavelmente foi assim em todos os tempos. Eu que, por lidar desde há muito com o conhecimento do passado fui descobrindo os problemas que existiam noutros tempos, tenho uma opinião bastante diferente. Quanto mais recuamos no tempo, mais nos apercebemos que maiores eram os problemas e menores eram os recursos para os resolver. Os mais velhos tendem a pensar que no seu tempo é que era bom! Será que era mesmo ou será que já se esqueceram de como era na realidade o tempo antigo em que viveram?

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publicado às 20:04


Variações sobre tempos idos

por Francisco Galego, em 04.02.07
Tanto os leitores como eu estamos um pouco cansados de tanta História. Para descansarmos um pouco, permitam-me que, escrevendo esta crónica, vos diga alguma coisa da minha própria história.
            Nasci em 1 de Agosto de 1941. Fiz há seis meses 65 anos. Entrei na chamada terceira idade da vida. Sou, portanto, a partir de agora, oficialmente, um velho. Estou a tentar aprender a sê-lo com a dignidade que me for possível. Não sinto qualquer angústia, nem a ideia de uma aproximação da morte me provoca medo ou sobressalto. Encaro-a como a coisa natural e certa. Até aqui a vida tem cuidado razoavelmente de mim. Não me apaparicou, mas também não me atormentou com inquietações de monta. Pedi-lhe pouco e ela foi-me dando o necessário para ir vivendo sem ter atormentadas razões de queixa.
 Desde muito cedo fiz a opção essencial que, de forma mais ou menos consciente, todos fazemos a partir de dado momento. Ao prazer preferi o sossego. Preferi o ir sendo razoavelmente, ao muito pretender para muito ter. Entre o servir-me e o compromisso de bem cumprir, escolhi o que me parecia ser o meu dever. De plena consciência, compreendi que não podia aspirar a grandes realizações e a espectaculares sucessos. Pareceu-me mais justo e adequado renunciar a grandes ilusões.
Um destino de aurea mediocritas pareceu-me ser uma possibilidade aceitável para que nasceu com tão poucas condições para muito aspirar. Pior seria a procura insana de uma improvável celebridade. Não tendo a propensão dos grandes sentimentos, preferi os afectos acessíveis, às inatingíveis paixões. Não escolhendo percorrer as vias que me levassem à riqueza, fui conseguindo o que me era indispensável para não sofrer de grandes carências. Para quem foi tão prudente nas suas aspirações, até que acabei por conseguir alcançar bastante. Para ir mais longe, só com um grande rasgo de sorte.
Chego a este patamar da minha existência e posso pensar e sentir que, até ao momento, o projecto concebido e executado pode ser avaliado positivamente. Sei que não depende completamente de mim que assim persista até ao momento final. Mas, enquanto tiver discernimento, procurarei agir para que continue desta feição, este trajecto que vai sendo a minha vida. Não lamento o que não fui e procuro não contabilizar como falhanço não ter alcançado o que não tenho. Porque, a maior parte das coisas que não consegui, foi porque as não desejei. E se outras não logrei foi porque tinha a clara consciência de que não tinha condições para lá chegar.
Esta é a avaliação que penso dever fazer neste início desta idade terceira e a que me parece a mais adequada ao projecto que me foi possível traçar como opção de viver. Porque, passou o tempo de ambicionar. É tempo de deitar contas ao que foi possível fazer.
Seria completamente descabida qualquer pretensão de recomeço. Nem estou zangado com a vida, nem decepcionado com o que da minha vida consegui fazer. Não terei sido excepcional pelo sucesso. Mas, e isso é muito mais importante que os tolos podem conceber, também não devo contar com um balanço final de falhanço. Não tive momentos de exuberante felicidade. Mas, também não conheci o desespero irremediável dos grandes sofrimentos.
Nunca me senti glorificado pela fama. Mas fui premiado com a consideração da grande maioria dos que me foram conhecendo. Posso dizer neste momento: Vivi razoavelmente a vida que me foi possível ir vivendo. Se ainda tiver que me atormentar com inesperados sofrimentos, fica aqui a confissão do balanço positivo que me sinto obrigado a fazer neste momento.
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Nasci nesta vila do Alto Alentejo, mesmo encostada à fronteira, que se chama Campo Maior. Embora colocada num recanto, afastada de vias importantes de passagem, foi, no passado, povoação de considerável importância militar, económica e demográfica. A presença num ponto bastante frágil, em termos de estratégia de defesa, constituiu-a como importante praça de guerra enquanto existiu o perigo de invasões a partir do território do poderoso vizinho que fica do outro lado. Mas a fronteira teve também efeitos positivos em termos económicos. O contrabando foi sempre fonte de consideráveis rendimentos e houve mesmo épocas em que se tornou fonte de fácil e rápido enriquecimento.
 Sendo de pouca extensão, o concelho, pela variedade das terras que o compõem, sustentou uma agricultura próspera em tempos em que predominava uma economia de subsistência, em regime de quase total autarcia. Foi o café, produto essencial do contrabando depois da guerra civil de Espanha, que lançou as bases da economia campomaiorense na actualidade. Do contrabando veio a acumulação de capitais que gerou a produção que, actualmente, constitui a base da sua prosperidade: a torrefacção de cafés.
            Nasci numa rua modesta como modesta foi a minha origem familiar: os meus quatro avós e as duas bisavós que ainda conheci, estavam ainda muito envolvidos na sua condição campesina. Os avós maternos vinham directamente de gente secularmente ligada ao trabalho nos campos. A mãe da minha mãe, minha avó Maria Catarina Cainço, descendia de uma família de camponeses naturais e residentes na pequena aldeia de Degolados, muito próxima de Campo Maior e que, à época do seu nascimento, estava administrativamente ligada ao concelho de Arronches. Esta minha avó veio com seus pais residir num monte em Campo Maior, onde conheceu o jornaleiro Jacinto de Jesus, natural de Elvas, freguesia de S. Pedro. Do casamento de minha avó Maria com o meu avô Jacinto, nasceram12 filhos, dos quais, como era muito usual entre a gente pobre, devido às doenças epidémicas que grassavam por aquele tempo, mormente a pneumónica, apenas sobreviveram quatro filhas: Palmira, minha mãe, era a mais velha, seguindo-se Mariana, Alice e Ana Maria. O meu avô Jacinto era, em toda a família da parte de minha mãe, o único que tinha frequentado regularmente a escola e que, por conseguir escrever e ler razoavelmente, largou a enxada ingressando na Guarda Nacional Republicana. Minha mãe, por vontade e esforço pessoal conseguiu tornar-se modestamente letrada.
Da parte de meu pai, os meus avós eram gente já bastante desligada do trabalho agrícola. Minha avó Ana do Carmo Serra era, como as duas gerações anteriores na sua família, basicamente uma contrabandista, actividade que, na nossa terra, como bem sabem todos os meus conterrâneos, era tão digna como qualquer outra e que só podia ser exercida por gente de coragem e de grande seriedade. Aliás, aqui na raia de Espanha, todos éramos um pouco contrabandistas e o contrabando gerou sólidas fortunas, tanto no domínio da agricultura, com no campo das indústrias.
Tal como minha avó, também meu avô, Francisco Martins Galego, fazia do contrabando a sua principal ocupação, se bem que este tivesse sido arrastado para esta actividade pelo casamento com minha avó Ana – os seus irmãos eram, na sua maioria, gente ainda ligada ao trabalho nos campos.
 Embora analfabetos, os meus avós paternos cuidaram de escolarizar os seus dois filhos varões: meu pai, José e meu tio Francisco; de minha tia Maria foi entendido por meus avós que, sendo rapariga, não necessitaria de tal investimento.
Minha mãe, sendo a primogénita dos filhos sobreviventes, aprendeu o ofício de costureira de alfaiate, ou seja, de vestuário masculino. Meu pai que tinha mais dois irmãos, minha tia Maria mais velha dois anos e meu tio Francisco mais novo cinco anos, nunca aceitou o destino de contrabandista que o fatum familiar lhe parecia traçar – o risco e a incerteza desse tipo de vida, não quadravam com a timidez e a ânsia de segurança que lhe moldavam o feitio. Por isso, desde muito cedo, foi destinado ao comércio. Daí que, depois de um longo aprendizado de mais de seis anos em loja alheia, pôde, com o apoio dos pais, estabelecer-se por conta própria pouco antes de casar e de eu ter nascido.
            A rua onde nasci era modesta, encostada às muralhas que ainda limitavam o perímetro da vila em muitos pontos. Ficava, contudo, entre as casas dos meus avós, quase a igual distância de ambas, o que foi estrategicamente muito importante no quadro do mapa dos meus afectos. Subindo a rua chegava a casa de minha avó Ana. Descendo-a e virando a esquina, chegava a casa de minha avó Maria. Entre o tesouro de afectos que encontrava numa e a largueza de recursos que outra me propiciava, a minha infância decorreu de forma muito favorável. De certo modo, não sentia falta de quem me apaparicasse: era filho único, sobrinho único, neto e bisneto único de um grupo considerável de gente.
Nessa época, havia apenas dois primos – A Ana Rita e o Chico, filhos de Maria, irmã de meu pai – mas ambos, por razões diferentes, estavam afastados, enquanto eu estava constantemente próximo e presente. Assim, sem ninguém a disputar-me carinhos, a vida só podia correr-me facilmente. A própria vizinhança desenvolvia laços de grande familiaridade o que alargava ainda mais o extenso mapa dos meus afectos de criança.

Campo Maior, 24 de Janeiro de 2007

(publicado em Região em Notícias - Campo Maior, em 2 de Fevereiro de 2007)

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