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João Dubraz, enquanto cidadão e enquanto escritor, interessava-se pelos mais diversos temas e manifestava a sua opinião sobre as mais inesperadas questões. Por vezes, deixa-nos a sensação de que havia assuntos sobre os quais estava muito adiantado em relação ao que seria de esperar dos homens do seu tempo. Tanto mais nos surpreende quanto sabemos que a sua vida decorreu, praticamente toda ela, entre os muros da pequena e muito isolada vila de Campo Maior. Causa espanto que, vivendo longe dos grandes centros culturais, pudesse ter acesso a tão vasta informação e formular opiniões tão avançadas sobre problemas tão diversificados, sobretudo porque essas opiniões têm, em grande parte dos casos, um carácter acentuado de pensamento de vanguarda. Podemos, de certo modo, constatar que os homens de eleição mesmo que as condições em que vivem não sejam as mais favoráveis, tendem a perceber as coisas para além do tempo e do local em que lhes coube viver.
Para além disto, surpreende também o volume da sua produção. Além de dispersar colaboração com textos seus por diversos jornais, no jornal elvense “A Democracia” que se publicou entre os anos de 1869 e 1877, chegou a preencher, com os seus textos, praticamente a quase totalidade de três das quarto páginas que compunham o jornal, pois eram de sua autoria, o “Editorial”, o “Folhetim”, a Crónica da Política Externa” e o comentário dos principais acontecimentos parlamentares e governamentais que iam acontecendo no país.
Como amostra do que atrás escrevi, quanto à diversidade dos seus temas e dos seus interesses, transcrevo algumas passagens de um texto seu, publicado na página 4 do nº 39 do jornal “A Democracia Pacífica – Jornal do Alemtejo”, de Elvas, 28 de Junho de 1867, em que, numa caricatura muito irónica e mordazmente critica, nos revela o seu pensamento sobre temas, hoje tão actuais, como as questões ecológicas e os problemas ambientais.
O texto tem como título “Tipos Contemporâneos – O Arboricida[1]”.
Admirem a actualidade destas passagens, onde se fizeram as actualizações necessárias a uma melhor compreensão da prosa:
“O arboricida nasce como nasce o poeta e o estafador de rimas, o orador e o falador secante, o guerreiro e o poltrão, o homem de Estado e o caturra político, o progressista e o rotineiro, o activo e o indolente, o talentoso e o parvo.
Ainda nas fraldas infantis, nos braços da mãe ou da ama-de-leite, já os instintos destruidores do arboricida se revelam contra toda a planta que se assemelhe a árvore.      (…) Decorrido o tempo, o menino tornou-se réu de diversos crimes desta espécie durante as férias das suas tarefas escolares. Por vezes arrepelou as plantas dos canteiros do quintal paterno, atribuindo o estrago ao sujo esgravatar dos gatos. Noutras vezes, encaminhou a mão do irmãozinho para que este faça diante de tidos o que ele próprio receia fazer. Mas, o que sobretudo o atrai é a pequena árvore pública por que roça ao ir para a escola, pois que a vê frágil, apoiada por uma cana, tão maneira, tão sedutora! Daria o mais predilecto dos seus brinquedos para medir a sua força com a resistência que a estaca oferece. Porém, o medo impede-o de tentar. Dizem-lhe na escola que irá para a cadeia onde dão açoites aos meninos que ousem fazer aquilo que ele tanto deseja.  E, todavia, o pequeno facínora, que já teme a penalidade e só perante ela recua, apenas orça pelos dez anos! …
Atormentado pela fatal arboricida mania, mas satisfazendo-a sempre que pode, passou o agora adulto arboricida, anos e anos. Inúmeros têm sido os seus malefícios, tantos e tais quantos os que lhe tornou fácil a sua impunidade. Fez-se cínico. Não oculta já, por vezes até exagera, a má paixão que o domina. Desenraíza, abate ou mutila por toda a parte, conforme o capricho do momento. Transformou a bengala em arma ofensiva que, na sua mão, se transformou em instrumento destruidor. Se passeia num jardim, não se pode suster sem decepar alguma vergôntea ou ramo inofensivo: degola sem piedade a flor que se alteia. E, com tão criminosa existência, atingiu os vinte anos sem rugas, sem cabelos brancos e sem remorsos! …
O hábito do crime endurece mais e mais este tiranete sui generis. A impunidade reduplicou-lhe a ousadia. Abalar pequenas árvores que orlam as praças e caminhos, quebrar-lhes as vergônteas, matá-las impiedosamente, são passatempos de insípida vulgaridade. Como os Átilas, os Napoleões e outros tiranos, sonha com campos juncados de mortos: as selvas devastadas e os campos espezinhados deliciam-lhe o pensamento, Quando viaja, se alguma vez, com gesto desdenhoso procura a árvore copada para sob ela conciliar o sono à sua sombra, que sonho pensais que o faz sorrir e arquejar suavemente? … O de imaginar que o seu viçoso dossel foi presa das chamas ou que os seus ramos são desfeitos contra as rochas pelo desbastador do mato, ou que, por acção do carvoeiro, viu transformar-se em carvão o que antes fora planta com vida. Para o arboricida, é terrível acordar vendo incólume a árvore habitante do belo vale. Então, o raivoso tirano evoca as tradições de Nero e diz, parodiando o que aquela fera sanguinolenta terá dito ao ver a cidade de Roma que ardia:
Se eu pudesse reunir num só tronco todos estes parasitas que a terra alimenta, pediria a Deus que me desse um braço bastante forte para os aniquilar de uma vez.
Inspiraram-me estas ideias que acabo de expor, um passeio pela estrada de Campo Maior a Elvas. Havia há pouco tempo, junto ao hortejo dos herdeiros de Vaz Touro, uma superfície de uns cinquenta centiares de terra, coberta toda de choupos, plantados pelo condutor Caldeira quando fez a estrada. Em terra tão pobre de arvoredo como é Campo Maior, a vista pousava deliciosamente naquele pequeno oásis. O que julga o leitor que fui encontrar? … Vi uma hecatombe lastimosa: vi quase todas as árvores abatidas … provavelmente para restituir o mesquinho terreno à cultura de aveia ou cevada! Os cadáveres lá estavam ainda, mutilados e em montão, quase escondidos a um canto do lugar do suplício. Considerei-os por alguns instantes com dor de alma. Via ali a obra de um tugue[2] de nova espécie. Quem é? Como se chama? Não sei. Que importa o nome do arboricida, se o seu malefício é já irreparável!”
 
Este texto foi escrito há precisamente 141 anos. E, contudo, quanta actualidade podemos encontrar nas suas palavras!...
Ao lê-lo, vieram-me à mente os versos de Camões em que muitas vezes costumo reflectir para constatar que encerram uma grande e inquestionável verdade:
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.
Assim é decerto. Mas, há coisas que mudam tão lentamente que mais parecem estar paradas. Entre elas o pensamento e a atitude de alguns homens, faz crer que a própria mudança não existe.
Que escreveria João Dubraz se agora voltasse?
 

 


[1] Esclareço, não porque duvide da competência cultural dos leitores, mas para que não subsistam dúvidas ou confusões: Arboricida = O que destrói ou mata árvores. Grande Dicionário da Língua Portuguesa, José Pedro Machado, (Coord.), Ed. Circulo de Leitores, 1996, pág. 353.
[2] Tugue, do inglês thug, membro de uma extinta associação religiosa de estranguladores da Índia. Idem, pág. 461

 

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publicado às 15:46

 

Desde D. Dinis até ao século XIX, o Castelo de Campo Maior foi desempenhando a sua função de elemento importante para a defesa da fronteira na região onde confluem as bacias do Xévora e do Caia com o  rio Guadiana, região que se tornou, a partir de finais do século XV, o principal canal de invasões para exércitos vindos de Espanha.
A fortaleza que tornou Campo Maior uma das mais importantes praças de guerra de Portugal começou a ser construída em 1644, pouco depois da Restauração da Independência com a aclamação de D. João IV em 1640.
O velho castelo medieval que, durante mais de três séculos, fora elemento essencial de defesa da vila e do reino, foi relegado para o papel secundário de último reduto defensivo, estrutura para armazenamento de equipamentos militares e para acolhimento das guarnições que estacionavam na vila. À nova cintura defensiva constituída pelos baluartes ligados por cortinas, cabia agora, no essencial, a função defensiva.
O antigo castelo que, no século XIV, acolhia nas suas muralhas a quase totalidade da população da vila, tornara-se insuficiente para abarcar os arrabaldes que se foram estendendo para Norte e para Oeste. De tal modo a vila cresceu que a chamada “Vila Velha” foi definhando enquanto uma nova vila se espraiava pelas encostas da colina encimada pelo castelo. Dele ficavam os muros ameados e as torres quadrangulares de que se destacava, pelo volume e pela altura, a portentosa torre de menagem.
Desse antigo castelo muito pouco resta, depois do terrível desastre provocado pela explosão do paiol de munições da praça, que estava sedeado na dita torre de menagem e que, devido a um raio, deflagrou como uma bomba de grande potência, lançando sobre a vila a tremenda chuva de pedras que a danificou na sua quase totalidade e que matou ou feriu uma parte considerável da sua população.
É o castelo, mandado restaurar por D. João V, que João Dubraz descreve e exalta no texto que se segue, e no qual este notável escritor campomaiorense revela o seu afeiçoado apego ao património da sua terra, de que ele assume uma acrisolada e magoada defesa em prol da sua conservação e restauro.
Infelizmente, as suas queixas, revoltas e lamentos ainda possuem tanta actualidade que podiam, com pequenas diferenças, serem produzidas por qualquer campomaiorense nos nossos dias. Bastaria que a revolta e as queixas que João Dubraz faz a respeito do castelo, fossem hoje dirigidas contra o estado em que se encontram alguns muros das cortinas e baluartes da antiga fortaleza de Campo Maior. Podemos também invocar o choque que temos quando, vindos de Espanha pela estrada do cemitério, nos deparamos com o estado de porcaria e de degradação em que se encontram os baluartes de São Sebastião e da Boa Vista. Isto sem contar com a vergonha que sentimos quando os que nos visitam se deparam com estas situações e nos perguntam porque razão se permite que tal aconteça.
Se duvidam do que aqui escrevo, leiam com atenção o texto de João Dubraz que a seguir se transcreve. Porque João Dubraz foi escritor de muitos “recados”; recados tão pertinentes que, ainda hoje, devem ser tomados em consideração; porque, por mais que o tempo mude, haverá sempre homens dispostos em insistir nas maneiras mais erradas de encaminhar as coisas que afectam a vida e o património da comunidade…
“A fortaleza a que se chama castelo contém verdadeiramente dois castelos. A parte maior, moderna, compreendendo dois planos, tem seis torres com plataformas, podendo em cinco delas laborar a artilharia de rodízio; São todas ligadas a parapeitos com canhoneiras. Há também uma torre de vigia no plano superior e é aí a praça de armas[i] e a ermida.
Do lado do Ocidente eleva-se um recinto ameado, com duas torres, ao Norte e ao Sul, resto do primitivo castelo, destruído em grande parte pela famosa explosão do armazém da pólvora em 1732. As ameias, os adarves[ii] e algumas seteiras que restam, estampam nesta construção o selo interessante da Idade Média. Nada, porém, denuncia ali um edifício dos árabes – contra ao que pretendem alguns antiquários[iii]; a lenda da moira encantada poder-se-ia considerar tradição oral transmitida de pais para filhos se a poesia popular não tivesse encantado, em todos os velhos castelos, uma moira mais ou menos formosa. Na verdade, um protesto eloquente contra o fanatismo religioso.[iv]
As torres do velho castelo e a cortina que as liga, produzem um golpe de vista pinturesco e majestoso, que agrada aos viajantes. Porém, o fatal abandono da praça e a ruína ameaçadora desta parte da fortaleza interior, fazem recear que, em breve, mais um montão de pedras históricas ateste o clássico desleixo português.
Que governos são os nossos, tão avessos aos monumentos das antigas eras, que vão achatando o país com as ruínas desses poéticos gigantes da Idade Média?[v]
Sinto uma verdadeira dor de alma todas as vezes que considero o elegante recinto ameado onde se erguem as belas torres de D. Dinis. Esta alcáçova reconstruída e reparada cuidadosamente por gerações menos grosseiramente positivistas que a actual, além de ser para mim respeitável como monumento que é, de grande valor arqueológico, e até mesmo por memorar uma espantosa catástrofe, [vi]cujos vestígios são aí bem visíveis ainda, também está ligada às recordações saudosas da minha mocidade; e de tal modo está casada com elas que eu amo cada uma dessas pedras históricas como lembranças suave das minhas brincadeiras infantis. Sim… da infância – e não só desta – também da puberdade, da juventude, sonhos poéticos, fanatismo nacional, crenças políticas, tudo isto que é o meu passado, torno a ver palpitante e fervente de actualidade, quando visito estes muros seculares.
Mas, todo o castelo cai em ruínas … mãos de bárbaros têm introduzido o camartelo demolidor nos panos respeitados pelos séculos! As ameias das velhas torres têm sido quebradas ou arrasadas, os muros fendidos, os alicerces rasgados, o interior dos armazéns devastado. O vandalismo estúpido e criminoso nada poupa. Dentro de poucos anos, graças ao espírito destruidor que paira sobre os monumentos de Portugal, quando o viajante, na primeira cumeada do oeste, avistar Campo Maior, não verá, como ainda vê, duas vistosas torres feudais que recortam as suas ameias no horizonte; verá, porém, mais uma ruína gigantesca e melancólica, (…)”

 (In Recordações dos Últimos Quarenta Anos,2ª Ed., p.36 e 36)

 


[i] Local destinado a exercícios, paradas, revistas militares…
[ii] Caminho na parte de cima dos muros das fortalezas, por detrás das ameias.
[iii] A palavra antiquário que hoje se usa para designar os que negoceiam em coisas antigas, aqui significa os que estudam e se interessam pelas coisas do passado.
[iv] As frases finais deste período foram reformuladas para lhes aclarar o sentido que é bastante confuso na versão do autor.
[v] A partir deste parágrafo, este capítulo foi completamente remodelado em relação à 1ªedição desta obra. Nesta, o autor escreveu os seguintes apelos e considerações:
                Senhor ministro da guerra, senhor general da província, senhor engenheiro da 7ª divisão (provavelmente estropio este título), é uma vergonha que caia o formoso castelo de D. Dinis, por causa da miserável economia de algumas moedas. Quem não conserva os monumentos históricos, testemunhas quase vivas do heroísmo das gerações que nos precederam nesta terra, bem merece que, ampliando-se o dito pungente de Garrett, se diga: “Portugal é pequeno, os homens não são grandes”. Mas, dos governos, desses… direi o que são, de hoje a um ano, se o castelo não tiver sido concertado.
Isto tinha o autor escrito no ano anterior, no Folhetim do nº 501 de 4 de Março de 1866, do jornal “A Voz do Alemtejo”, onde pela primeira vez tinha publicado este texto, com o título “Bosquejos à pena V – O Castelo”
Na 1ª edição desta obra, publicada em 1868, acrescentou:
                Decorreu o ano, não se fez o concerto, e qualquer dia desabará a cortina que liga as torres de D. Dinis. Não deve faltar a frase prometida, já que faltou a pedra e cal. Quer saber o leitor o que são os nossos governos? São prodígios de proporção: Se a terra é pequena, os que a governam são… microscópicos.
[vi] O autor refere a reconstrução promovida por D. João V, após a explosão do paiol da pólvora em 1732 que arrasou praticamente o antigo castelo e destruiu grande parte da vila.

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publicado às 21:09

O radicalismo reformista do Setembrismo suscitou muitas resistências dentro das suas próprias fileiras, dando uma força cada vez maior aos que preferiam que o país fosse governado de maneira mais moderada, sem alterações tão rápidas e profundas do Estado e da sociedade.
Foram alguns dos apoiantes iniciais e figuras de proa do Setembrismo, como o duque da Terceira e o próprio ministro da defesa do governo setembrista, Costa Cabral, que organizaram a conspiração palaciana de que resultou na revolta militar de 27 de Janeiro de 1842.
Este golpe provocou uma alteração profunda da situação política. O Partido Setembrista aceitou a Carta e mudou o seu nome para Partido Progressista. Os cartistas ou cabralistas, como usualmente passaram a ser designados, que saíram vitoriosos do golpe de Estado, tornaram-se dominantes.
Foram marcadas eleições para 5 de Junho de 1842 que foram vencidas pelos cabralistas com dilatada vantagem. Houve muitas reclamações acusando de viciação do escrutínio. Aliás, estes processos tornaram-se habituais durante o Cabralismo.
Em Campo Maior o Partido Progressista era muito pequeno, constituído por uma minoria em que predominavam elementos duma classe média intelectualizada, ligada ao comércio e ao funcionalismo, sendo alguns deles militares. Nele se destacava João Dubraz pela sua apaixonada militância.
Os cabralistas dispunham do apoio da família real, de grande parte da população e da maior parte do exército.
Restava aos progressistas a via da conspiração a que alguns dos seus elementos se entregaram de alma e coração, como foi o caso de João Dubraz, em Campo Maior.
Por volta de 1845 a situação política começou a mudar. Costa Cabral, demasiado confiado nos seus apoios políticos, começou a impor mudanças que se tornaram muito impopulares. O descontentamento cada vez mais generalizado que essas medidas provocavam, veio dar novo alento aos progressistas que levaram a efeito várias tentativas de revolta e passaram a apoiar as diversas revoltas populares que espontaneamente começaram a eclodir.
A maior dessas revoltas foi a chamada “Revolta do Minho”, que começou com o movimento espontâneo popular designado por “Maria da Fonte”, em volta da questão da proibição dos enterramentos nas igrejas e da obrigação de serem feitos nos cemitérios, bem como da decisão do governo levar a efeito um levantamento geral do cadastro das propriedades rurais.
Este movimento de revolta alastrou rapidamente a todo o país devido à feição cada vez mais prepotente que o governo de Costa Cabral assumia para impor as suas decisões.
O pequeno mas muito aguerrido grupo de progressistas de Campo Maior, no qual João Dubraz assumira posição de grande relevo, decidiu participar também neste clima geral de revolta.
Foi neste contexto que se deram os acontecimentos que são descritos no texto que a seguir transcrevo e que vos proponho para ajuizarem se há ou não razão para se poder considerar João Dubraz, dentro das características próprias do seu tempo, um escritor de elevado mérito literário. Repare-se no carácter “cinematográfico” da narrativa, que quase nos faz visualizar a situação que nos descreve e que nos transporta para a vivência de um acontecimento de elevado dramatismo.
 
CAMPO MAIOR, 24 DE MARÇO DE 1846 – 5 HORAS DA MADRUGADA.
Passou-se aviso à nossa gente e à hora prefixa estávamos reunidos numa cavalariça de meu pai, no largo da Misericórdia, onde hoje existe uma padaria. Transportámos para ali as armas em golpelhas de palha e por meio de outros disfarces engenhosos. (…) Ressoaram as cinco horas: nunca hora alguma fora tão solene para mim. À primeira badalada irrompemos com a lava de um vulcão, subimos rapidamente a rua do Poço, e aí, caindo ao Seabra uma pistola do cinto, ouviu-se uma detonação. Corremos qual mais por causa do desastroso e chegámos à Praça Velha (…)
A onda revolucionária passou diante da cadeia e desembocou no pequeno largo onde se abre a porta do castelo. O sentinela gritou, mas, tomado de medo, largou a espingarda e fugiu para o corpo da guarda, escondendo-se debaixo da tarimba (…) Entrámos de tropel vitoriando a liberdade e a rainha, e íamos invadir o casão quando vimos que estava lá um destacamento de caçadores: recuámos um pouco desconcertados, ficando diante da porta em montão. Não esperávamos encontrar o destacamento reunido com as armas na mão. Como se via a luta e o sangue foram inevitáveis.
Não posso dizer com certeza de que lado rompeu o fogo; asseveram uns que fomos nós os primeiros, dizem outros que foram os caçadores. Inclino-me à primeira opinião, porque os soldados estavam em grande desordem à nossa chegada. È certo que se ouviu uma detonação e que esta foi seguida de um tiroteio desordenado mas forte. Era horrorosa a gritaria, a situação tremenda: mais de cinquenta homens dentro e fora do casão, vozeavam e faziam fogo a oito passos de distância. Nós estávamos descobertos, os caçadores guarneciam-se detrás de uma pequena construção que há dentro. O fumo envolvia tudo. Nisto desenhou-se ante nós uma figura humana que agitou a espada como quem oferecia render-se: era o oficial. Mas o fogo não descontinuava apesar de muitos gritos para que cessasse. A figura desapareceu e nós avançámos de novo e apoderámo-nos afinal do casão. Tudo isto se passou em menos de três minutos.
O espectáculo que então presenciei foi horroroso, estranho e imponente. No fundo da casa jazia um caçador estendido que ainda agitava uma perna. Os soldados de punham as armas e abraçavam-nos pelos joelhos. Eram recrutas inexperientes, crianças que choravam em face da morte. O casão estava coberto, quase todo, de enxergões, as armas abatidas em desordem e os soldados despojavam-se também das correias que nos entregavam trémulos e chorosos.
(João Dubraz, 1869, p. 80 a 88)
 
Graças a este golpe de audácia, os progressistas ganharam a Praça de Campo Maior. Para que conste, aqui registo os nomes de alguns dos mais destacados participantes neste acontecimento: J. Dubraz que ficou a comandar a companhia de artilharia, João José da Fonseca Seabra a de cavalaria, ficando as companhias de infantaria entregues ao comando de Mariano Ferreira, Epifânio da Mata (amigo de J. Dubraz desde a infância) e João Carlos Gambôa Mello e Minas (outro grande amigo de J. Dubraz). O comando militar da Praça foi entregue a José Velez Caroço que viera com o primeiro reforço de Portalegre e que, para o efeito, foi graduado em major.
 O governo de Costa Cabral caiu. João Dubraz foi nomeado interinamente administrador do concelho. Tinha nessa altura 28 anos de idade.
 

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publicado às 17:36


CAMPO MAIOR NA CRISE DE 1383-1385 - I

por Francisco Galego, em 03.02.08
Segundo Fernão Lopes era “Campo Maior, um bom lugar, que tinha voz pelo rei de Castela”.
 Paio Rodrigo, Alcaide de Campo Maior e Ouguela, tomou o partido de Castela.
No Alentejo tomaram também voz por Castela: Olivença, Portel, Moura, Noudar, Mértola, Vila Viçosa, Monforte, Crato, Amieira, Castelo de Vide, Marvão, Arronches e Alegrete.
Com as vitórias do mestre de Avis muitas destas terras mudaram de partido. Mas Campo Maior resiste até à sua conquista pelo novo rei de Portugal. Por isso muitos dos seus habitantes foram despojados dos seus bem que passaram para a posse dos partidários de Portugal: O mestre de Avis confiscou várias casas e terras em Campo Maior e Ouguela.
“Escudeiros de Évora, partidários do Mestre, então já aclamado Rei de Portugal, sabendo que Arronches, vila que desde 1834 aderira á causa nacional, se encontrava com falta de mantimentos, procuram abastecê-la, não sem de caminho tentarem um ataque a Campo Maior. Esta é socorrida com gente de Badajoz e os portugueses sofrem pesada derrota.”
Afinal os campomaiorenses de 1383 seriam os netos dos castelhanos que habitavam Campo Maior em 1297. Os laços que até aí os ligavam à vizinha cidade de Badajoz tinham sido mantidos pelo contacto constante através da curta distância de 15 km facilmente vencidos por uma “carrera ancha”, sem obstáculos. Maior era a distância a Elvas, cidade portuguesa mais próxima, e mais difícil o trajecto por terrenos mais acidentados e tendo de atravessar a correnteza do Caia a meio caminho entre os dois povoados.
Com a renovação populacional a partir de 1388, com a mudança de cargos e propriedades das mãos dos partidários de Castela para a posse dos partidários do rei de Portugal e com o corte radical das dependências em relação a Castela, acelerou-se o processo de integração de Campo Maior num sentimento de portugalidade.
 

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publicado às 12:41


CAMPO MAIOR NA CRISE DE 1383-1385 - III

por Francisco Galego, em 03.02.08
CRÓNICA DEL’REI DOM JOÃO I DA BOA MEMÓRIA
Fernão Lopes,
Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 1977
 
Parte I, Capítulo LXVIII, p. 117:
“E mui poucos lugares e fidallgos tomarom voz do Meestre pera o ajudar, e todollos outros se deram a elRei de Castella obedeeçemdo a sseu mamdado; assi que pollas comarcas do rreino estavom por ell estas fotallezas, comvem a saber em amtre Tejo e Odiana: Arrõches, Allegrete, Castell de Vide, o Crato, a Ameheira, Momforte, Campo Mayor, Ollivemça, Villaviçosa, Portell, Moura, Noudall, Mertolla, Almadãa.”
 
Parte I, Capítulo CVI, p. 180:
“… escreveu o Mestre de Lisboa onde estava, a Gil Fernandes de Elvas, que fosse falar a Paae Rodriguez Marinho, Alcaide de Campo Maior, que alçasse voz por ele e que lhe faria muitas mercês.
Gil Fernandes cavalgou logo com cinquenta homens de armas consigo, e foi-se a Campo Maior; e estando fora da vila numa igreja que aí se faz, mandou dizer a Paae Rodriguez, que lhe prouvesse de sair fora do castelo, para falar com ele, coisas que eram de sua honra e proveito. Paee Rodriguez disse que não sairia fora mas que fosse ele Gil Fernandes entre o muro e a barreira do castelo e que levasse dez homens de armas consigo.
Gil Fernandes disse que lhe prazia, com a condição de que, de uma parte e de outra fosse feito preito e menagem, que fosse um seguro do outro; Paae Rodriguez disse que lhe prazia e assim foi firmado e posto entre eles. Então, apartou Gil Fernandes dez homens de armas e foi-se à barreira do castelo onde haviam de falar e achou já Paae Rodriguez prestes; e quando se vieram abraçar, lançou Paae Rodriguez a Gil Fernandes o braço no ombro à maneira de segurança e com a outra mão lhe segurou a espada e disse: vós sereis preso.
 

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O SÍTIO DE S. PEDRO NA HISTÓRIA DE CAMPO MAIOR (I)

por Francisco Galego, em 24.01.08
ORIGENS DA VILA
                                      
“ (…) Porém duvidamos que a povoação fosse fundada no sítio onde está o castelo. Talvez no sítio de S. Pedro no qual há uma ermida e onde, segundo fontes muito antigas haveria uma fortaleza ou atalaia dos romanos.
Dista a Ermida de S. Pedro da povoação de hoje dois mil passos em terreno plano, com um vale muito fresco, capaz de hortas e pomares, com água nativa e conserva um chafariz (nome que nos deixaram os mouros), que é do concelho desta vila.
Estamos persuadidos de que neste campo, por ser o maior que há nestas vizinhanças, fundaram os romanos este povo, obrigados por um acampamento em que se fixaram como sucedeu nas outras mais povoações que fundaram, como é sabido.
 Neste campo de S. Pedro se acham as ruínas, cimentos, sepulcros, além de colunas. Distante um quarto de légua conserva-se um muro de pedra e cal que corta um pequeno ribeiro e a que ainda hoje se chama Muro da Represa, que servia para que os gados dos moradores bebessem nele.
É também ponderável que neste sítio de S. Pedro se apartam vários caminhos e estradas para Mérida, Badajoz, Ouguela, Albuquerque e Arronches.” (Estêvão da Gama, p. 30)

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O SÍTIO DE S. PEDRO NA HISTÓRIA DE CAMPO MAIOR (II)

por Francisco Galego, em 24.01.08
ERMIDA DE S. PEDRO
“Neste sítio há uma Ermida do Apóstolo S. Pedro…
 (…) A Igreja de S. Pedro é uma Ermida feita de paredes de terra e de muito pobre arquitectura sem que tenha demonstração pudesse nunca ter mais avultados princípios. A qual se reedificou nos nossos tempos, porque no da Guerra da Aclamação (Restauração) padeceu grande ruína. As colunas (grandes pedras que se encontram neste lugar) que ainda se descobrem, mostram que o lugar tinha extensão porque há três anos que andando um lavrador lavrando uma pequena parcela de terra que está defronte do chafariz, descobriu uma sepultura de que tirou tijolos, para se aproveitar deles, de notável grandeza e qualidade de barro e fica este sítio em bastante distância da Igreja de S. Pedro. (Estêvão da Gama, p. 29 e 30)
            “(…) A Ermida …a qual é de grande romagem dos moradores às quintas-feiras da Quaresma, com indulgência plenária (tem na parede do lado esquerdo da nave, uma imagem de São Pedro). A Imagem é pintada a fresco na parede, em hábito pontifical e se conserva no mesmo estado, como refere o Dr. Novaiz, acrescendo à sua ponderação a circunstância da Guerra da Aclamação, que durou 28 anos, esteve exposta à inclemência dos tempos por se arruinar a Igreja e não teve nenhuma diminuição aquela Imagem, não tendo sido retocada, nem necessitar de nenhum benefício da arte.
            Neste sítio estão as colunas de que já se fez menção e outros sinais de edifícios. Há pouco tempo, a ermitoa que hoje existe achou uma moeda de ouro de tamanho de uma de seis vinténs, mas muito delgada e com um bocado menos na circunferência. Porém, de uma parte estão as letras bem formadas e se lê nelas Toleto Pios, cuja moeda se acha em poder de Estêvão da Gama de Moura e Azevedo, Governador desta Praça...”
(Estêvão da Gama, p. 61)     

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O SÍTIO DE S. PEDRO NA HISTÓRIA DE CAMPO MAIOR (III)

por Francisco Galego, em 24.01.08
O CEMITÉRIO DE S. PEDRO – Um projecto não concretizado
Até ao século XIX, os enterramentos eram feitos no interior das igrejas, nos adros, nos terrenos envolventes, nas cercas dos conventos, ou seja, em Campo Santo.
Num documento que relata a explosão do paiol da pólvora em 1732, que quase destruiu a vila de Campo Maior, indicam-se claramente quais eram os locais de enterramento, nessa época:
- Na Igreja Matriz enterram-se 76 pessoas de comunhão e 28 crianças pequenas;
- No Convento de S. Francisco, 17 crianças pequenas;
- No Hospital de S. João de Deus, 6 soldados e uma criança pequena;
- Na Misericórdia, enterrou-se apenas o seu provedor Francisco Pires Cotão que foi a pessoa principal diante do Regimento de Cavalaria e um sargento de Infantaria.
No século XIX começaram a surgir medidas a condenar esse costume, considerado contrário à saúde pública. Em Portugal, foi com o governo de Costa Cabral, mais tarde foi agraciado com o título de Marquês de Tomar, que foi aprovada uma lei de Novembro de 1845, a qual, além de várias disposições de carácter tributário, determinava que os enterramentos passassem a ser feitos em cemitérios, fora das povoações, como medida de protecção da saúde pública.
A reacção das populações, principalmente no Norte do país, conduziu a revoltas que culminaram num período de grande agitação. Em 1846, a chamada revolução da Maria da Fonte que fez cair o governo de Costa Cabral, serviu de prólogo à Patuleia que lançou o país na guerra civil em 1847.
Mas, em Campo Maior, a questão dos enterramentos nas igrejas já se tinha colocado muito antes. Numa acta da Câmara de 23 de Agosto de 1834, é referido um “Acórdão em Câmara Municipal” em que se estabelecia: “Entendendo esta Câmara às diferentes representações que tem feito o Médico deste Concelho, e a que têm continuado nesta vila diferentes moléstias epidémicas, as quais (têm) tanto mais graduação quanto menos polícia há, e que o enterramento dos corpos humanos nas Igrejas, é de muito prejuízo à saúde pública em todo o tempo, e muito especialmente em tempo de epidemias, determina esta Câmara que, de hoje em diante, não se enterre corpo algum humano nas Igrejas, e sim no cemitério que será interinamente a cerca do Extinto Convento de Santo António desta vila; cujo acórdão obriga a todas as pessoas que hajam de morrer sem atender a hierarquias – porque a lei é igual para todos (Carta Constitucional) –, nem tão pouco a moléstia.”
O projectado Cemitério de S. Pedro:
Uma acta da Câmara de 31 de Agosto de 1836 refere a arrematação da obra do cemitério e a construção do mesmo junto à ermida de S. Pedro
Na acta da sessão da Câmara de 28 de Outubro de 1836, ficou registado que:
“Respondeu-se à Circular Nº 13 que trata sobre os cemitérios, expondo-se que, por falta de meios, se não tem concluído a construção do Cemitério Público; porém que já se acha principiado, com uma grande parte da parede feita. E todos os materiais juntos, e espera-se ficar pronto de tudo até ao dia 30 de Novembro próximo; e que, neste concelho, não há mais povoações em que hajam de se fazer mais cemitérios públicos.”
Contudo, houve muitos protestos da população contra a localização do cemitério, por medo de que este fosse inquinar as boas águas da fonte e chafariz de S. Pedro, e a obra esteve embargada. O problema do cemitério foi sofrendo adiamento e só estaria completamente resolvido em 1859 com a escolha de novo local, junto à Horta do Paraíso. As actas da câmara vão dando conta desse adiamento pois o terreno que já tinha sido murado para o cemitério passou a ser arrematado em hasta pública para ser cultivado.
Na acta de 17 de Setembro de 1851 consta o seguinte: “Acto de arrematação do terreno do cemitério de S. Pedro feita a José Augusto de Miranda Cayolla por tempo de um ano pela quantia de14$400 réis.
Na acta da sessão da Câmara de 24 de Setembro de 1853:
“Não se arrematou Vale Morto, nem o Cemitério de São Pedro, por não haver lanço que conviesse a esta Câmara; por isso, ficou adiada para a sessão do 1º dia do futuro mês de Outubro. Para ir novamente à praça para o fim de se obter maior lanço.”
O Cemitério do paraíso:
O último enterramento feito no cemitério da cerca de São Francisco, foi o de Aurora Pereira em 14 de Dezembro de 1859 e o primeiro no Cemitério do Paraíso foi o de Maria do Carmo em 17 de Dezembro de 1859, segundo os assentos de óbitos da Freguesia de S. João Baptista.
            Mas, uma lembrança coeva particular refere que:
            “(…) no dia 15 de Dezembro de 1859, deu começo o Cemitério do Paraíso, extramuros desta vila de Campo Maior, sendo a primeira pessoa sepultada nele o filho do Morgado José Augusto Cayolla (mas ocultamente).

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O SÍTIO DE S. PEDRO NA HISTÓRIA DE CAMPO MAIOR (IV)

por Francisco Galego, em 24.01.08
FONTE DE S. PEDR0
Tudo indica que seja a mais antiga das fontes de Campo Maior.
É constituída por uma tríplice estrutura de acordo com as funções a que se destinava: fonte, bebedouro e tanque.
Localizada numa importante saída de Campo Maior, perto do local onde se ramificam os caminhos que dão acesso a Ouguela e às terras mais férteis do concelho.
Fica situada à entrada de um vasto terreno plano que antigamente se chamava “a defesa de S. Pedro”: este terreno, propriedade do município, tinha funções importantíssimas para a comunidade agrícola que habitou Campo Maior até meados do século XX. Aí se localizava uma área importante de cultivo de cereais, a qual servia também de pastoreio comunitário para os gados, em aproveitamento dos restolhos, e de rossio onde se faziam as eiras. A função de pastoreio comunitário está bem testemunhada na existência de um bebedouro de muros baixos destinado ao gado ovino, o qual fica a pouca distância da Fonte de S. Pedro, e é alimentado pelo mesmo nascente.
A Fonte de S. Pedro foi sempre de tal importância para a população de Campo Maior que, quando se projectou a construção do cemitério no terreno murado adjacente à Ermida de S. Pedro, o povo protestou, temendo a contaminação das águas. A Câmara, devido à pertinência da razão invocada, mudou o local do cemitério para o sítio onde, até hoje, se localiza.                       (Ver:   http://alemcaia.blogs.sapo.pt/4071.html )

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O SÍTIO DE S. PEDRO NA HISTÓRIA DE CAMPO MAIOR (V)

por Francisco Galego, em 24.01.08
Barragem do Muro  
No concelho de Campo Maior locaizam-se  três das vinte barragens romanas estudadas a sul do Tejo:
- Barragem do Muro (Ribeira dos Cães);
- Barragem de Olivã (Ribeira de Olivã);
- Barragem da Mourinha. (Ribeira dos Saberes)
“ Os Romanos aprenderam muito da sua engenharia com os Gregos, não tendo propriamente contribuído neste domínio com ideias originais. (…). Com efeito, a engenharia romana era extremamente prática e a grande maioria das obras era levada a cabo por pessoal militar ou sob sua orientação.” (p. 38, 39 e 44)
 “As barragens inventariadas a sul do Tejo destinavam-se essencialmente a rega ou a abastecimento populacional ou, simultaneamente, aos dois usos. (…)
Os cursos de água têm um regime extremamente irregular, estando secos grande parte do ano. O aproveitamento das águas superficiais só era, pois, possível mediante o armazenamento em albufeiras a criar por barragens. (…)
Muitas das barragens inventariadas estavam associadas a villae, mediante as quais se realizava a ocupação do “agros transtagano.”             
 Uma villae era constituída por um conjunto deedificações destinadas a habitação (villa urbana) e a explorações agrícola e artesanal (villa rústica). A maioria das villae urbanae da Península Ibérica dispunha de um ou mais pátios fechados nos quais frequentemente se encontravam tanques ou fontanários, que tinham não apenas uma função lúdica, mas também prática, pois constituíam reservatórios de água que facilitavam a rega dos jardins interiores. As edificações situavam-se na zona central de uma propriedade agrícola, o fundus.
O tipo de vida nas villae era profundamente marcado por Roma; estas dispunham em geral de instalações balneares (termas) que, na região em estudo, tinham frequentemente como origem de água as pequenas albufeiras criadas pelas barragens.” (P. 51)
 “A Barragem do Muro sobressai entre as barragens inventariadas pelas suas características arquitectónicas e pelas soluções técnicas adoptadas. Esta barragem apresenta altura e desenvolvimento notáveis, sendo o único caso em que são visíveis nos paramentos fiadas horizontais de tijoleira, dispostas regularmente, e apresenta arcos entre os contrafortes sujeitos a maior tensão. A função de tais arcos seria presumivelmente a de concentrar as cargas de peso próprio sobre os contrafortes.
Trata-se também da única barragem que apresenta, adossada ao paramento de montante, uma superfície argamassada, a qual pode corresponder ao revestimento de uma sapata de fundação da estrutura. Na ligação do muro a tal superfície observa-se um rebordo convexo usualmente encontrado noutras estruturas hidráulicas para minimizar os riscos de fendilhamento e facilitar a limpeza.” (P. 57)
Com a capacidade de 178.000 m3 é, das referenciadas, uma das de maior dimensão; situa-se na ribeira dos Cães; a área da bacia hidrográfica é de 1,7 km2. (P. 61)
 “Para a cota de 234 m (cota aproximada do topo), o comprimento da albufeira seria de 460 m, a área inundada de 82.700 m2 (…)
Trata-se de uma estrutura inédita que constitui o exemplo mais monumental da arquitectura hidráulica romana a sul do Tejo. Efectivamente, a estrutura revela uma complexidade inexistente na maioria dos casos. Consiste num muro de secção transversal rectangular de 4,2 m de espessura no trecho central, suportado a jusante por 16 contrafortes, separados entre si 3 a 4m: Tal muro apresenta a altura máxima visível de 4,6 m e o desenvolvimento de 174m, com traçado poligonal. O trecho mais alto da barragem corresponde à zona onde corre a linha de água, observando-se do lado jusante restos de três arcos de volta inteira, apoiados em contrafortes. A sua função seria a de reforçar a estabilidade do sector sujeito a maiores pressões.
A secção transversal da barragem é suficiente para assegurar a estabilidade, sem a contribuição dos contrafortes. (…)
Esta barragem possuía provavelmente uma descarga de fundo na zona de passagem da actual linha de água.” (…) (P. 65 do livro de António de Carvalho Quintela; João Luís Cardoso; José Manuel Mascarenhas, Aproveitamentos hidráulicos romanos a sul do TejoContribuição para a sua inventariação e caracterização, Ministério do Plano e da Administração do Território - Secretaria de Estado do Ambiente - Direcção-Geral dos Recursos e Aproveitamentos Hidráulicos - Agosto de 1987)

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