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Aqui se transcrevem textos, documentos e notícias que se referem à vida em Campo Maior ao longo dos tempos
A escola do século passado, habituada à tranquila uniformidade das clientelas burguesas que normalmente a frequentavam, vê-se actualmente invadida por uma pluralidade de classes, com uma grande variedade de culturas e de atitudes comportamentais. Os saberes, antes muito estáveis, ficam sujeitos a uma mudança contínua e progressivamente acelerada.
Com o regresso às aulas as escolas ganharam de novo vida. Os pátios voltaram a ressoar com o burburinho das brincadeiras. Naturalmente, invadiu-me uma certa nostalgia. Vieram-me à memória histórias dos meus longos anos de docência, como esta que vou partilhar hoje convosco:
Partimos muito cedo porque o caminho era longo até Mérida, nosso destino naquela jornada. Para alguns deles, era a primeira oportunidade de atravessarem a fronteira e conhecerem terras e gentes de outro país.
O largo em frente à escola onde nos tínhamos concentrado, estava quase deserto pois ainda faltava muito para o toque da primeira aula. Os alunos ensonados acomodaram-se nos bancos do autocarro. Sabia que o silêncio duraria pouco. A excitação depressa os iria despertar e começariam os cânticos e os chistes do costume. Havia que conceder alguma liberdade pois uma saída do bairro em que estavam confinadas as suas vidas de jovens, era por si motivo de animação. Tinha preparado alguns documentos de apoio mas pensava propor-lhes a sua leitura quando, vencidos pelo cansaço, ficassem mais sossegados.
Reparei no grupo dos indianos: ensimesmados, tinham mergulhado na leitura dos documentos, alheios ao que decorria à sua volta. Se interpelados, sorriam, mas continuavam no seu canto sem se misturarem no ambiente geral.
Como era costume com gente daquelas idades, começaram muito cedo a atacar os farnéis que as mães zelosas lhes tinham acomodado nas mochilas. Mais uma vez reparei no pequeno grupo: esses não comiam nem bebiam. Olhavam a paisagem, trocavam impressões entre eles, quase num sussurro. Não podia deixar de estranhar, pois era grande a sua integração na turma. Aliás, grande parte destes alunos, mantinham-se agrupados quase desde o início da sua vida escolar. Alguns eram companheiros desde o começo da escolaridade. Por outro lado, eram moços de bom trato e não existia entre eles qualquer assomo de segregação ou separatismo.
Circulei um pouco entre aquele grupo a quem me ligava o afecto de vários anos de convívio. Estas viagens eram sempre um bom pretexto para cimentar afectos, alargar o círculo das convivências. E eram também momentos importantes para concretizar e operacionalizar as aprendizagens, por vezes demasiado abstractas, que se conseguiam realizar na sala de aula. Por isso insisti sempre na sua necessidade e interesse, desde que fossem preparadas e executadas com o devido cuidado e com a planificação adequada. Sem isso, facilmente resvalavam para mera excursão, simples passeio, sem metas nem objectivos.
O facto de se dispor de um dia inteiro em contacto com uma ou duas turmas, era uma ocasião única para individualizar mais a relação com aqueles jovens com os quais estava habituado a conviver no espaço e no tempo curtos das aulas, ou nos encontros breves e esporádicos nos corredores.
Tínhamos programado uma paragem para almoço. Os jovens agruparam-se e, como era costume entre eles, logo se estabeleceu um espontâneo e comunitário sistema de trocas. Eu via-me aflito para me livrar de toda a mistura em que se transformaria uma refeição, que pretendia fosse frugal, numa misturada de acepipes e sabores que fariam perigar a minha disposição no resto da viagem.
Nessa altura dei por falta do pequeno grupo que já atraíra a minha atenção no autocarro. Procurando por eles, disseram que não tinham saído. Fui ao seu encontro. Lá estavam, na mesma quietude. Vi que não comiam. Preocupado, pensei que se teriam esquecido de trazer comida. Sentei-me oferecendo do que eu tinha e dizendo que os outros teriam o suficiente para com eles poderem partilhar. Um deles recusou e começou a explicar: que tinham pensado não vir, mas que a minha insistência e explicação os tinha convencido da importância da visita; que não sendo esta um passeio, mas uma sessão para aprender, não havia razão para faltarem.
Um tanto intrigado com aquele discurso, tentei brincar com a situação perguntando se não gostavam também de se divertirem. Que a questão não era essa. Mas que estavam em pleno mês do Ramadão e, por isso, a sua religião lhes impunha certos preceitos e restrições que eles, como bons crentes, tinham de cumprir. Chegada a hora demarcada, poderiam então quebrar o jejum ingerindo os alimentos que traziam para o efeito. Que agradeciam que eu fosse discreto e evitasse explicações junto dos outros pois não queriam tornar-se alvos de chacota, garantia que lhes dei de imediato.
Aquela inesperada situação pôs-me a pensar. Desagradava-me sobremaneira que eles procurassem esconder algo que lhes era tão importante, que constituía parte integrante da sua identidade, das suas tradições e da sua cultura.
Nesse ano teríamos de abordar o tema do islamismo. Era dos assuntos que abordava com menos à vontade. Uma religião encerra vivências e sentimentos que só se entendem quando experimentados. Quando a não entendemos corremos o risco de a abordar, não com a compreensão mas com os nossos preconceitos. Ora, eu tinha uma soberana ocasião de propiciar a estes jovens uma explicação do islamismo porque viviam intensamente essa religião.
Procurei ficar a sós com eles de novo e expliquei-lhes o meu projecto. Ouviram-me com muito interesse e com visível apreensão. Insisti e prometi ajuda para se organizarem. Afinal ainda faltava muito tempo para chegar a essa matéria e eu também estava muito interessado em aprender com eles. Não tiveram como recusar.
Logo após a visita, combinei com eles um plano de trabalho: obras a consultar, documentos de apoio a elaborar, planificação da aula que lhes cabia concretizar. Começaram timidamente, acreditando muito pouco nas suas capacidades para concretizarem o projecto. Ao longo do processo muitas vezes me disseram que a investigação que iam fazendo os levava a descobrirem aspectos da sua crença de que antes não tinham conhecimento esclarecido.
À medida que avançavam foram ganhando ânimo. Foi já com entusiasmo que viram chegado o momento de intervirem.
A turma estava na maior expectativa quando se deu começo a esta aula que saía um pouco da rotina habitual.
Numa breve introdução comunicaram à turma como nascera este projecto e como tinham procedido para o concretizarem. Começaram por explicar como, apesar de serem de origem indiana, eram verdadeiros muçulmanos, termo que significava “submisso a Deus” no árabe, língua em que o profeta Maomé começara a pregar a doutrina que lhe fora revelada por Alá, deus único, verdadeiro criador de tudo o que existe. Como esta crença chegara à Índia, terra dos seus antepassados e como aí se tinha misturado com usos e costumes dessa região. Esclareceram o significado do Ramadão que corresponde a um período de 30 dias, o nono mês do calendário lunar usado pela sua religião. Que o Ramadão celebra a entrega pelos céus aos homens do Corão, guia espiritual que orienta os homens servindo de meio para obterem a salvação. Que durante o Ramadão os muçulmanos devem concentrar-se na sua fé pela contemplação, pela devoção e pela purificação. Por isso, devem abster-se de comer, beber, fumar e ter relações sexuais neste período de jejum. Devem também evitar as más acções e os maus pensamentos como a maledicência, a calúnia, o falso juramento, a mentira, a luxúria, a cobiça, a ganância. Devem frequentar a mesquita para lá rezarem, meditarem e recitarem o Corão. São cinco as orações diárias, havendo ainda a Salat-ul-tarawih oração nocturna.
No final do dia o jejum é quebrado para, depois de rezadas as orações, se fazer uma refeição chamada Iftar. Na manhã seguinte, “quando, à luz do sol, se puder distinguir um fio preto de um fio branco”, os muçulmanos regressam ao jejum.
Falaram da importância das cidades santas, referindo em particular Meca, relatando que já a tinham visitado com as suas famílias. Realçaram a grande importância que o parentesco e as relações familiares têm para os muçulmanos, procurando rezar e preparar as refeições em conjunto, procurando viver em perfeita harmonia.
O grande número de dúvidas, objecções e pedidos de esclarecimento que se seguiu, foram a melhor prova do êxito da iniciativa. Mas o melhor de tudo foi ter visto o legítimo orgulho sentido por estes rapazes por terem assumido com dignidade e frontalidade a sua condição, as suas convicções, a sua cultura e as suas tradições. Todos nós que tivéramos ao privilégio de participar, ficámos mais ricos de conhecimento e mais disponíveis para sermos mais tolerantes e abertos à diferença.
No início de um novo século, a escola como instituição e os profissionais a ela ligados, encontram-se num ponto de viragem tão profunda como aquela em que se encontravam no início do século passado.
Tão radical é esta mudança, que melhor seria falarmos numa mutação.
Não é por acaso nem por capricho de moda que ocorrem estas transformações. No estado actual em que se encontra o mundo, em que os dogmas substituem a razão, em que o fanatismo se sobrepõe à tolerância, em que a desensofrida busca dos prazeres e da notoriedade faz esquecer o necessário cumprimento dos deveres, torna-se urgente, torna-se inadiável que a escola desenvolva novas perspectivas curriculares que integrem conteúdos de aprendizagem que vão para além dos conhecimentos específicos das disciplinas e integrem também aprendizagens referidas às atitudes, aos valores e às responsabilidades sociais.
Novos currículos implicam o desenvolvimento de novas competências da parte dos profissionais ligados às organizações escolares. Uma adequada educação para os valores implica que os professores se tornem educadores. O desenvolvimento das competências que preparem as novas gerações para a inserção no mundo do trabalho, torna necessário que os professores actuem como formadores.
Por outro lado, a escola é cada vez mais um universo aberto à comunidade e, em consequência disso, vê-se condenada a uma autonomia que a responsabiliza e obriga a gerir bem os recursos de que dispõe, ao mesmo tempo que, em consequência da mesma autonomia, fica exposta à pública prestação de contas através da avaliação dos efeitos sociais que produz.
No final dos anos 80, António Nóvoa, professor universitário e investigador no domínio da História da Educação, publicava uma obra de grande mérito com o título: O Tempo dos Professores.
Focada sobre os finais do século XIX e as primeiras décadas do século XX, a obra pretende simbolizar a emergência de um novo tipo de profissionais do ensino e de uma nova maneira de viver e exercer o ofício da docência.
Aos velhos mestres trabalhando isolada e rotineiramente no ministério do ensino como simples repetidores de conhecimentos, o autor contrapõe os primeiros professores que ele caracteriza por dois aspectos:
- A consciência de serem um grupo socioprofissional que se agrega como corpo organizado em volta de associações sindicais para lutar pelos seus direitos;
- A consciência de que a sua acção profissional exige saberes e competências específicas que fazem dos professores não apenas meros mestres instrutores mas pedagogos dotados de teorias que iluminam e orientam a sua prática docente.
O Tempo dos Professores é o tempo duma forte luta sindical e o tempo das sucessivas, às vezes coincidentes, correntes pedagógicas resultantes mais duma reflexão filosófica do que o resultado de investigações empíricas, praticamente inexistentes na época.
Hoje, no começo de um novo século, evidenciam-se os indícios de que estamos a chegar ao fim desse tempo. Estamos a chegar ao fim do tempo dos professores.
Novas condições sociais provocaram efeitos relevantes na organização do trabalho e na estruturação das famílias. Depois das duas grandes guerras do passado século, a escola viu-se confrontada com grandes modificações que vão abalar as suas seculares convicções e rotinas:
- A massificação das populações escolares;
- A complexificação das aprendizagens;
- A entrada massiva das mulheres no mundo do trabalho;
- A passagem da família de modelo tradicional para a família nuclear.
A escola, habituada à tranquila uniformidade das clientelas burguesas que normalmente a frequentavam, vê-se invadida por uma pluralidade de classes, com uma grande variedade de culturas e de atitudes comportamentais.
Os saberes, antes muito estáveis, ficam sujeitos a uma mudança contínua e progressivamente acelerada.
Dentro da profissão docente verifica-se uma tremenda ruptura. A partir dos anos 50, chegaram à profissão docentes improvisados, destituídos dos saberes científicos, didácticos e pedagógicos necessários ao exercício competente da docência.
A investigação científica, muito alheada das questões escolares, demorou a reagir e a procurar as soluções para os novos problemas que em todos os campos se levantaram: formação dos professores, indisciplina e dificuldades de aprendizagem dos alunos, insucesso escolar massivo e tremendamente selectivo do ponto de vista social.
Tudo isto provocou uma fractura, até hoje não resolvida, entre os professores. Enquanto uns aceitaram os novos desafios e fizeram deles o estímulo que os levou a evoluírem para práticas que os transmutaram em autênticos educadores-formadores, outros aferraram-se aos velhos hábitos, refugiaram-se nas esgotadas e inúteis rotinas que em muitos casos levaram à sua anulação como pessoas responsáveis e como professores.
Esta fractura manifestou-se em todos os sectores ligados às questões da educação: nas políticas educativas, nas práticas docentes e nas próprias organizações sindicais de professores. Nestas, a proliferação de associações é tanta quanta a confusão que lavra nas aspirações profissionais dos docentes. Algumas destas organizações sindicais privilegiam as opções políticas quase esquecendo as questões educativas. Quase todas elas estão de tal modo focadas na defesa intransigente dos interesses corporativos, que esquecem por completo as questões deontológicas tão essenciais ao profissionalismo docente. Ora, a defesa intransigente dos direitos perde força e razão quando ignora a necessidade de esclarecer e assumir os deveres essenciais que garantem o sentido social da educação. Não é por acaso que, com grande prejuízo dos interesses da classe, se vêem tantos bons educadores completamente alheados das questões sindicais.
No meio destes e doutros novos problemas vão emergindo as novas soluções. Uma nova época desponta. O tempo dos profissionais da educação que agrega à volta das questões educativas, professores, psicólogos, sociólogos, e todos os que trabalham na escola e com a escola para conseguirem preparar as novas gerações.
Assim como o pensamento sobre as questões escolares deixou de ser a especulação reflexiva das teorias pedagógicas para dar lugar à emergência das Ciências da Educação, também os professores vão dar origem a uma nova geração de profissionais ligados à escola. Começou já a emergir o tempo dos educadores-formadores.
Mas, entretanto e ainda por muito tempo, as escolas apresentarão este carácter confuso, algo anárquico e desorientado que lhes confere um certo ambiente de alienação. É que, nas escolas de hoje coexistem muitas e muito diferentes maneiras de estar na profissão. Ainda subsistem alguns, felizmente já muito poucos, que se assumem como meros instrutores. Outros, embora tenham competência para serem professores, foram-se reduzindo à condição de meros funcionários da educação. Há, contudo, outros que, pretendendo assumir uma atitude de verdadeiro profissionalismo docente, se angustiam por não encontrarem nem as respostas, nem as condições para agirem de forma profissionalmente competente. Apenas uma minoria consegue ir ultrapassando as dificuldades e, qual fermento levedando a massa, vão trabalhando no sentido de desenvolver uma acção que podemos considerar verdadeiramente educativa e formativa. São estes que podemos considerar os verdadeiros educadores-formadores.
São assim os tempos de viragem:
- Os saudosos do passado lamentam o fim de um mundo que gostavam de manter;
- Os esperançosos do futuro anseiam pela emergência de um mundo novo;
- Muitos, porque não entendem as mudanças, mergulham num desorientado desespero que os impede de agirem segundo objectivos claros, traçando projectos bem estruturados e agindo segundo programas de acção bem determinados.
As crises são dramaticamente perturbadoras. Mas são também geradoras de mudanças e as mudanças são a condição básica do progresso em busca de um mundo que se pretende cada vez melhor.
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