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Na passada semana, terça-feira, dia 27 do passado mês, o Diário de Notícias ocupava toda a página 20 com o tema das “crianças enjeitadas”. Primeiro com uma notícia proveniente de Itália – A “roda dos enjeitados” regressa em resposta a onda de abandonos de bebés –, depois com uma informação de carácter histórico – Uma prática de séculos pensada para os “bastardos”.
Em Itália, um hospital público nos subúrbios de Roma, estabeleceu um serviço para acolhimento de crianças recém-nascidas abandonadas. Numa dependência criada para o efeito e rodeadas de processos para garantir a discrição e o anonimato, as crianças podem ser deixadas num berço, o qual tem um dispositivo que avisa o pessoal do hospital da sua presença. A partir desse momento, a criança fica totalmente ao cuidado desse pessoal. Ora, isto não passa do retomar de uma instituição criada na Idade Média e que, em muitos países da Europa, sobreviveu até ao século XX.
Desde a aurora das civilizações, existiu o hábito de abandonar crianças. O abandono e o infanticídio existiram mesmo na muito humanista civilização helénica. Na Roma antiga, reconhecia-se ao pater famílias, o direito de enjeitar os filhos, mesmo os legítimos. As crianças “enjeitadas” eram deixadas na columna lactária, onde podiam ser recolhida por casais que as quisessem adoptar ou por quem as pretendesse criar para delas fazerem escravos.
Desde cedo o cristianismo desenvolveu os sentimentos de compaixão e caridade para com os recém-nascidos indesejados. Na Idade Média criou-se o hábito de deixar as crianças nos adros das igrejas ou nas portarias dos conventos. Mas, mesmo assim, muitas crianças eram abandonadas em locais que as colocavam em risco de morrerem de frio, de fome, ou de serem devoradas pelos animais. Começaram a aparecer homens de fé que dedicavam a sua vida à salvação das crianças abandonadas. Eram uma espécie de ermitões que buscavam as crianças para as entregar a instituições que delas cuidassem. Houve mesmo um Papa, Inocêncio III que, no século XII, se dedicou empenhadamente a este problema.
Nos conventos femininos, pela sua particular aptidão para intervirem nesta questão, foi criado um serviço organizado de recolha e assistência às crianças abandonadas. Ficou conhecida pelo nome de roda dos enjeitados ou, simplesmente, a roda. Consistia numa janela aberta para o exterior do convento, onde um cilindro oco, de madeira, girava sobre um eixo e que tinha uma abertura onde as crianças podiam ser deixadas. Bastava tocar uma sineta que estava ao lado, para que a irmã rodeira viesse recolher a criança abandonada.
 
 
 
                            Roda dos Expostos
          Museu Etnográfico González Santana, Olivença
 
Em Portugal, há notícia dos expostos serem entregues ao cuidado dos conventos, desde o início da nacionalidade.
No século XVI, com a criação das misericórdias, são estas instituições de assistência que passam a dedicar-se à acção caritativa da roda dos expostos para utilizar a expressão mais usada em Portugal. Onde não existiam misericórdias, ou onde estas não tivessem capacidade para assumirem este serviço, deviam ser os municípios a encarregar-se de dar solução ao problema.
Em meados do século XIX, com o triunfo do Liberalismo, a questão dos expostos começou a ser posta de maneira muito diferente, acabando por suscitar uma tremenda polémica que transparece na maioria dos jornais da época.
Aconteceu que, precisamente quando eu estava a analisar jornais publicados nos anos 60 do século XIX publicados em Elvas, comecei a deparar com artigos e notícias que versavam sobre esta questão. Simultaneamente estava a ser discutida a questão da intervenção voluntária da gravidez (IVG), com vista à realização do referendo no passado dia 11 de Fevereiro.
Como a questão dos expostos tende a interagir com a questão do aborto, não pude deixar de notar o paralelismo entre as duas questões. Primeiro pelo carácter profundamente polémico que implicam; depois pela maneira como um dos problemas implica o outro; em terceiro lugar pela semelhança dos argumentos utilizados e as posições que estavam a ser tomadas sobre a IVG e os que tinham sido usados no século XIX sobre a questão dos expostos.
Nesse tempo havia os que entendiam que as rodas dos expostos, devido ao seu carácter assistencial e aos imprescindíveis serviços que prestavam à sociedade, deviam ser preservadas, só que a expensas dos serviços do Estado, através das câmaras municipais.
Contrapunham outros que a roda dos expostos era uma instituição própria doutros tempos menos esclarecidos e incompatíveis com o Estado de Direito e com um grau de civilização alcançado pela humanidade. Denunciavam que, sendo os expostos quase sempre o produto de relações ilícitas e a consequência de atitudes imorais, o Estado e a sociedade tudo deviam fazer para as denunciar e obrigar os responsáveis a assumiram os sagrados deveres da sua paternidade.
Foi esta a corrente de opinião que primeiro venceu e as rodas dos expostos foram, por força da lei, condenadas à extinção.
Os efeitos não se fizeram esperar: passado pouco tempo, dispararam tragicamente o número de infanticídios e o número de mulheres que morriam em resultado de abortos mal conseguidos.
Reacendeu-se a polémica. Formou-se um movimento de opinião favorável à reorganização das rodas. Mas porque a sanha dos opositores não abrandava, tentou-se uma conciliação moderadora: as rodas seriam criadas apenas em alguns lugares e funcionariam das nove da manhã às três horas da tarde. Com isto pretendiam alguns levar a que as pessoas, obrigadas a exporem-se publicamente, evitariam recorrer a tal serviço.
No Distrito de Portalegre, só Elvas, Alter do Chão e Portalegre tinham rodas dos expostos.
Os resultados não foram famosos. Para evitar a exposição pública, começaram a aparecer pessoas que, a troco de um pagamento, se disponibilizavam para levar as crianças desde a povoação de origem até aquela onde funcionava a roda. A demora das viagens por péssimos caminhos e as condições inadequadas em que eram transportadas, provocavam a morte de grande número de crianças, sem esquecer os actos criminosos de alguns desses transportadores que, para ganharem mais e com menos esforço, eliminavam as crianças, sabendo que os pais, por quererem manter o anonimato, os não podiam denunciar. Por isso o jornal O Transtagano, de 20 de Maio de 1860, comentava:
Que resultado se pretende tirar da centralização das rodas? Diminuir o número dos nascimentos ilegítimos? Não, porque as causas são outras. A centralização das rodas só diminuiu o número dos nascimentos ilegítimos nas estatísticas porque o número dos infanticídios tem aumentado.
As causas dos nascimentos ilegítimos são o vício, a miséria e a fraqueza do coração humano. …Quando a fome e a desgraça chegam a certo grau…sacrificam-se todos os deveres da honra e do pudor. Quando há homens dispostos a comprar um prazer à custa de um remorso… Não é às pobres mulheres, vítimas da sedução que deveis oprimir com o desprezo e com a vergonha dessa maternidades ilegítimas. O sedutor é o verdadeiro culpado; é que abusa da miséria; é o libertino.
Em tais casos, o fruto do vício, da miséria e das fraquezas do coração deverá ser a vítima expiatória dos seus progenitores?”
As rodas voltaram a funcionar em todas as capitais de concelho. Por testemunhos orais, tenho notícia de que a de Campo Maior funcionava numa casa da Rua de Pedroso. Mas, agora em condições mais humanizadas. As crianças eram entregues a amas que se dispunham a criá-las a troco de um subsídio concedido pela câmara. Mas a instituição roda dos expostos, no meio de tanta polémica,ficara desacreditada. No nosso país, foi declinando a ponto de estar extinta no final do século XIX. Não porque os problemas tivessem sido resolvidos; mas porque, entretanto, surgiram outras instituições de apoio à infância e também por terem mudado algumas das condições da sociedade que determinavam a sua existência.
Evoquei este caso pela importância que pode ter para melhor pensarmos outros factos com muita actualidade. Sobretudo para nos fazer pensar que há certas questões sociais que, pelo seu melindre, não devem ser discutidas em termos ideológicos. Sobretudo quando implicam consequências trágicas para a vida de tanta gente.
Há questões que, mais do que serem acaloradamente discutidas, necessitam de ser, ponderadamente, bem resolvidas.

Campo Maior, 5 de Março de 2007

Região em Notícias de Campo Maior, 9 de Março de 2007   

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publicado às 15:13


Acabou o carnaval

por Francisco Galego, em 27.02.07
Quando escrevo este texto é Quarta-feira de Cinzas. Terminou o Carnaval. Guardadas as máscaras e os trajes exibidos pelas figuras grotescas do Entrudo, a vida vai agora voltar à normalidade.
            Aqui em, Campo Maior, o Carnaval decorreu com alguma animação, mas sem as grandes manifestações de festa que eram os Carnavais de outros tempos.
 Os desfiles que percorreram as ruas foram interessantes e animados. O de sexta-feira, dedicado às escolas do concelho, teve a função pedagógica de levar as crianças a participar na criação e preservação das tradições culturais da comunidade a que pertencem. O de sábado, para os adultos, foi bastante animado e participado. De acordo com a sociedade democrática em que vivemos, perdeu por completo o carácter elitista que tinha em meados do século passado.
            Por razões que se podem facilmente entender, o Carnaval campomaiorense que, por tradição e por natureza tem um carácter muito “caseiro”, começa cedo e cedo acaba. Evita assim entrar em concorrência desigual com manifestações semelhantes em terras vizinhas, as quais, com Carnavais mais apelativos, reservam o Domingo Gordo e Terça-feira de Entrudo para as suas realizações.
            As manifestações carnavalescas no tempo da minha juventude aqui, em Campo Maior, tinham como já referi na minha colaboração anterior neste jornal, as marcas do tempo que então se vivia no nosso país e que se traduziam numa profunda estratificação social baseada no poder económico e político e na importância social que esse poder conferia às pessoas. Daí que entre o Carnaval das elites e o Entrudo dos pobres, existisse uma completa separação. Contudo, noutros tempos bastante anteriores, o Carnaval tinha tido um fulgor e intensidade muito maior. Vejamos como o primeiro jornal que se publicou em Campo Maior, o “Campomaiorense” descreveu o Carnaval de há oitenta anos:
            “A época carnavalesca teve este ano um brilho desusado e que há muitos anos não tinha nesta vila … Fez-se uso dos saudosos pós pretos, malagueta queimada, talos de couve, águas sujas lançadas das janelas sobre os transeuntes, …esguichos e enfarruscadas…arremessaram-se ovos de cinza e até ovos de verdade…
No domingo e na terça-feira de Carnaval houve festivas batalhas de flores no corso elegante da Canada, onde uma enorme fila de algumas dezenas de coches, landaus, berlindas e cadeirinhas, volteavam para baixo e para cima num rodopio de carrossel. Deram viva nota os carros da elite feminina que se esmerou nas ornamentações a capricho e na confecção das toiletes garridas das senhorinhas. As crianças participaram como cúpidos, pierrots e pequenas fadinhas, animando o ambiente com a sua inocente alegria e as suas estridentes risadas.
Muitos caros artisticamente ornamentados, participaram neste cortejo, brincando-se muito por toda a parte, dos carros para as janelas e das janelas para rua, travando uma autêntica batalha de papelinhos, tremoços, violetas, rebuçados e bombons.
 Pelas ruas, mascarados sem conta, luzidias cavalgadas, paródias, cegadas.
Bailes em quantidade. Os que se realizaram em casa dos Srs. Viscondes de Olivã primaram pela distinção. Houve também bailes nas casas do Sr. Barbas, do Sr. José Ramos e na do Sr. João Martins Leitão, nos quais se dançou e cantou até altas horas da madrugada.
Os bailes no Teatro do Castelo foram espampanantes de entusiasmo e os concursos de máscaras provocaram grande entusiasmo. Dançou-se o foxtrot, o two-step, o jazz-band, bem como danças regionais e nacionais.
No Grémio brincou-se, riu-se e dançou-se. Disseram-se frases de espírito e esboçaram-se alguns namoros. Várias senhoras da nossa melhor sociedade cantaram árias e canções para deleite dos que as puderam escutar.
Quando o baile terminou – 8 da manhã! – já o sol doirado e brilhante se espraiava alegre e contente pelas ruas da vila.
Para em tudo ser completo, o Carnaval terminou no enterro do Entrudo com a sua imponência macabra e tétrica, como se pode ajuizar pelas centenas de fantasmas envoltos em lençóis brancos, formando duas longas filas, conduzindo tocheiros acesos, numa guinchadeira de pranto infernal…
Atrás o esquife funerário seguido pela banda que executava com muito sentimento e profunda mágoa a marcha fúnebre de Chopin…
De vez em quando o cortejo parava para ser entoada a magistral oração do bacalhau a pataco por um sumo-sacerdote de voz de cana rachada.
Acabou-se o Carnaval. O Entrudo ficou morto e enterrado. Que descanse em paz até ao novo ano.”
Este texto reporta-se aos anos de 1923 e 1924. Portanto, a uma época em que a nível político existia ainda um regime democrático, mas em que começavam a germinar as sementes da situação de crise que iria culminar, três anos depois, numa ditadura de cerca de meio século de duração. Já se antevê a tendência para que uma elite se afirme como grupo dominante na sociedade portuguesa.
Hoje, perdeu-se a tradição de fazer que o Carnaval, chegada a terça-feira, desse ainda um ar da sua graça com uma cerimónia muito solene, mas muito chocarreira, promovendo a sua despedida com o Enterro do Entrudo, também designado como Enterro de Bacalhau.
Depois do Carnaval, a Quaresma. Depois dos excessos e dos exageros de todas as formas, vem um tempo de sossego e de contenção. É desta alternância que se faz a vida dos homens e se organiza a vida em sociedade.
Contudo, à mocidade embalada pelos dias de folia, custava-lhe a despedida do Carnaval. Procurava a todo o custo prolongá-lo evitando mergulhar no período de abstinência que se ia seguir até à Páscoa. Assim, no primeiro domingo da Quaresma, faziam-se nas sociedades recreativas, bailes muito concorridos, os bailes da pinhata.
Esta parece ser uma tradição que se constituiu por influência de Espanha, se nos reportarmos a uma notícia publicada num jornal de Elvas, o Transtagano, de 24 de Fevereiro de 1861, onde se escreveu que este é o nome que tem o baile de máscaras que, no reino vizinho, pelo menos em Badajoz, costuma ter lugar no primeiro domingo de Quaresma. A dar fé neste documento, nessa época a tradição dos bailes da pinhata ainda não estava implantada em Portugal.
E, pronto! Foi-se o Carnaval. Esta crónica que vai ser lida quando o Carnaval já estará morto, enterrado e esquecido, será como que a nossa crónica da pinhata. Até ao próximo ano não voltaremos a falar do Carnaval.

Campo Maior, 21 de Fevereiro de 2007     

Região em Notícias de Campo Maior     2 de Março de 2007

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publicado às 10:33


Carnaval de outros tempos II

por Francisco Galego, em 16.02.07
Estamos numa época do ano em que, no meu tempo de infância, as gentes do campo chamavam, segundo uma designação mais antiga, de Entrudo e que a gente que se tinha por mais ilustrada designava por Carnaval.
Por vezes, nos jornais do século XIX que actualmente me entretenho a investigar, encontro referências ao Carnaval de outros tempos, em Campo Maior. São, geralmente, referências a um Carnaval “bem comportado”, de gente séria que não cometia desmandos e que desdenhava e censurava “as grosseiras e violentas diversões das gentes rudes do campo, sem sentido das medidas e sem educação”. Por exemplo:
 No domingo gordo inauguraram-se nesta vila os bailes públicos de máscaras. O primeiro teve lugar no teatro (do castelo), levado a efeito pela Sociedade Artística, auxiliada por alguns não artistas, os quais, em comissão mista, tomaram a direcção do espectáculo. O teatro estava ornado sem luxo, mas com asseio e bom gosto e manteve-se em toda a noite na mais rigorosa decência. À entrada do salão de baile (plateia superior), cada máscara dizia o seu nome ao presidente da comissão.
A filarmónica artística, vestida uniformemente, deu começo ao espectáculo com uma sinfonia: levantado o pano, um artista, moço de merecimento moral e intelectual, entrou em cena com os emblemas que representam o tempo e figurou as quatro estações do ano…com versos alusivos.
Depois começou o baile que durou até às 2 horas da noite. Nos intervalos houve quadros vivos…
“No terceiro dia de Entrudo teve lugar o segundo baile de máscaras. Foi brilhante, foi até esplêndido e houve um grande concurso de espectadores. Desta vez, o número de Máscaras não baixou de sessenta: apareceram costumes variados e de bom gosto e houve muita animação. O ardor dos dançadores chegou a ser por vezes frenético … o movimento e alegria foram constantes…
À comissão que dirigiu os espectáculos, todos os louvores são devidos: nunca os houve em Campo Maior com mais ordem…” (In A Voz do Alentejo, 1866).
Muito raramente aparecem referências às outras manifestações do outro Carnaval, o Entrudo rude e violento, principalmente à celebração da “5ª- feira das comadres”, pela gente mais ligada ao trabalho nos campos e que eu ainda presenciei, em toda a sua pujança, nos tempos da minha infância.
Nesse tempo, quando se começavam a ouvir os estrondos do rebentar das bombas e os gritos chistosos com que a rapaziada perseguia as vítimas das impertinentes partidas, sabíamos que o Entrudo tinha começado.
Os “largalos” consistiam em rabos dos animais esfolados, trapos ou escritos com frases como Sou burro, Fujam que marro, que os brincalhões se entretinham a pregar nas costas dos incautos que eram escolhidos para vítimas. A tarefa de pregar estes objectos nas costas das pessoas sem que estas o pressentissem, exigia descaramento, astúcia, rapidez e perícia. Depois, o desgraçado a que se pregava a partida, ia passando pelas ruas sob a chufa dos gozadores divertidos que gritavam, “Lárga-lo!... Lárga-lo!” evitando que este percebesse que era o alvo desta gozação.
O rapazio adorava o perigoso jogo do lançar de bombas e de fazer rabear os busca-pés, com que procuravam assustar as pessoas. E não apenas nas ruas. O hábito que nesse tempo havia de manter abertas as portas das casas, dava azo a que os mais violentos deitassem esses objectos para dentro das casas o que dava origem a grandes sustos e alaridos. Os gritos das mulheres assustadas e as correrias dos malandros que procuravam fugir sem serem identificados, punham as ruas em alvoroço.
De noite formavam-se as trupes de mascarados que percorriam as ruas metendo-se com quem por eles passava. Caraças, mascarilhas, pinturas e óculos serviam para esconder a identidade, permitindo atitudes que não se assumiam de cara descoberta. Os homens e as mulheres aproveitavam para se travestirem envergando roupas velhas e grotescas, disfarçando a voz, aproveitando este período de maior liberalidade de comportamentos que não eram admitidos em situações normais de convivência em sociedade, como o hábito de mascarrar e de enfarinhar que permitia um contacto físico entre os sexos que estava de todo vedado nas condições normais do resto do ano. Por vezes, esses bandos de foliões entravam de rompante pelas casas, sendo recebidos em alarido pelos moradores e pelos vizinhos que acorriam a participar na festança. Se a trupe ia acompanhada de tocadores, podia mesmo improvisar-se uma bailarada.
 Mandava o decoro que se respeitassem as pessoas e as casas dos que, por razões de doença ou de morte, estivessem em situação de resguardo ou de luto. Aliás, exigia o decoro que essas pessoas se mantivessem o mais distantes possível das manifestações do Entrudo.
Os dias grandes do Entrudo mais ligado à cultura camponesa eram a 5ª- feira das Comadres e a 5ª- feira dos Compadres. Na das Comadres, os homens organizavam-se em bandos para a chocalhada: cobertos de capas oleadas e fazendo soar grandes chocalhos e mangas, iam pelas ruas provocando as mulheres que respondiam ao desfio lançando sobre eles baldes de água, nem sempre limpa, cinza, pó de carvão, farelos e serradura e outras coisas menos próprias que não convém designar. Agrupadas em certas casas, as mulheres colocavam à janela estandartes de panos coloridos, enfeitados com vistosas fitas e outros ornamentos, desafiando os homens a que os tentassem alcançar. Iniciava-se então uma feroz contenda em que os que estavam em baixo procuravam a todo o custo subir para alcançar o apetecido troféu e as que estavam em cima tudo faziam para impedir que tal objectivo fosse concretizado.
Na 5ª-feira dos Compadres o estandarte era substituído por um espantalho e de novo se desencadeava a contenda.
Realizavam-se muitos bailes no Entrudo. Os rurais – jornaleiros, criados e criadas de servir – frequentavam os da “sociedade da música” que, por estar ladrilhada com lajes de xisto negro que largava um pó que se agrava à roupa, era, por graça, designada pelo nome de “casinha do picom” ou por “bailes do assento” devido á localização da sociedade.
Os bailes da “sociedade da praça” eram reservados a uma espécie de classe média que incluía os comerciantes e os homens dos ofícios – ferreiros e ferradores, carpinteiros de “finos” e de “obra grossa”, comerciantes e caixeiros, pedreiros (alvanéus), paneiros e alfaiates, sapateiros, correeiros e albardeiros – enfim, todos os que tinham profissão não relacionada com o trabalho no campo ou que cultivassem apenas terras por sua própria conta, ou seja, os pequenos e médios proprietários.
Por volta de meados do século passado, foi mantido o hábito de se organizarem as Marchas de Entrudo, com algumas semelhanças com as actuais marchas populares – como as de Lisboa - só que com um aspecto mais chocarreiro, de acordo com o carácter carnavalesco da quadra. Deram muito nas vistas algumas marchas organizadas e ensaiadas pelo Carrasco e pela parceria constituída pelo sapateiro Joaquim d’Elvas e pelo, sacristão da Matriz, António Bajé. Estas distinguiam-se pelo brilho dos figurinos, pela perfeição das danças coreografadas e pelo cuidado que punham nas músicas e cantares ensaiados para o efeito. Os dois elementos da parceria referida esforçavam-se sempre por se apresentarem travestidos da forma mais gloriosa que lhes fosse possível, compondo extraordinárias personagens de rainhas, fadas ou princesas, pois, além da marcha que iam cantado e dançando, paravam nos cruzamentos das ruas e nas praças para representarem pequenos entremezes como, por exemplo, a extraordinária saga da “Princesa Magalona”.
Numa sociedade profundamente estratificada como a que nesse tempo habitava Campo Maior, nem no Entrudo eram concebíveis misturas das “pessoas comuns” com as “famílias notáveis”. Estas faziam, à sua maneira, o seu Carnaval: organizavam as suas trupes para irem de casa em casa animar as pessoas do seu “meio”.Os seus bailes eram reservados e realizavam-se em casas particulares – os assaltos -, ou no Grémio, sociedade recreativa muito selectiva, designada por “a sociedade dos ricos”.
Esta “elite social”, durante alguns anos organizou uma espécie de corso local, um cortejo ou desfile que o povo designava por “a batalha das flores” e que consistia em as famílias do “círculo dos importantes” desfilarem ao longo da rua da Canada, em charretes ou noutro tipo de trens de tracção animal, travando uma amável “batalha” de pequenos saquinhos de farinha, grão, feijão, farelo, serpentinas, papelinhos, entre os que circulavam e os que assistiam na rua ou nas janelas. Ao povo cabia o papel de assistir e de se deslumbrar com o brilho dos trajes de dominós, damas antigas, arlequins e columbinas, envergados pelos figurantes.
Hoje, tudo está mais igual. A sociedade está seguramente mais justa e isso é mesmo muito importante. Mas custa um pouco a aceitar que a vida se tenha tornado muito mais interessante.
Campo Maior, 7 de Fevereiro de 2007
(Publicado em Região em Notícias de Campo Maior, 16 de Fevereiro de 2007)

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publicado às 14:46


Carnaval de outros tempos I

por Francisco Galego, em 16.02.07
O Transtagano (1860 – 1863) -  Nº 192,  Elvas - Domingo, 2 de Março de 1862
 
            “O Carnaval, pelo menos aquele que se mostra nas ruas e praças, vai definhando cada vez mais…
            Com efeito, aquele buliçoso Entrudo doutras épocas não muito distantes, fugiu de nós espavorido e despeitado pela seriedade dos tempos de agora.
            O que é feito das orgias saturnais que deleitavam os menos escrupulosos?
            Aonde foram refugiar-se esses brinquedos selvagens, não raramente causadores de gravíssimos desgostos, no meio do geral delírio que desvairava as cabeças dos mais circunspectos?
            A brutal laranjada, os ovos arremessados de longe, a água derramada em profusão sobre corpos agitados pelo reboliço da ocasião, deixaram de figurar no catálogo das diversões populares nesses dia de febril loucura em que o ciúme dos maridos, a rigidez dos pais e a gravidade das mães, tinha de fechar os olhos a milhares de atrevimentos, a excessos de licenciosidade que, na véspera, ou dois dias depois, fulminariam com todo o rigor da mais austera moral e castigariam com o brio de quem preza o seu decoro e o da sua família.
            Vendo banidos esses usos grotescos e imorais, não hesitamos em render homenagem à civilização que, pintando-os em toda a sua hediondez, tem chamado gradualmente o nosso povo a melhor caminho.
Hoje não se toleram certas demasias que a boa razão condena. Cada qual procura divertir-se sem descer da sua dignidade, nem permitir que se falte aos deveres da decência e da boa cortesia. As ruidosas bacanais das ruas ficaram reduzidas á aparição de máscaras inofensivas que a polícia vigia cautelosa.
As perigosas e indecentes assaltadas em que, o decoro das famílias e não poucas vezes o pudor, eram atrozmente ofendidos, cederam o lugar a pacíficas reuniões aonde não são esquecidos os ditames da moral e da boa educação. As cidades de maior vulto recreiam-se com os bailes de máscaras e com as representações de peças mágicas ou burlescas, que mantenham o bom humor e a hilariedade. Nas terras de menor vulto, as assembleias ou círculos recreativos, proporcionam às famílias uma distracção honesta e amena em que não se conhece o bulício da época senão por algumas atitudes de maior jovialidade e pela chuva de papelinhos cortados que cobrem as salas.” (RCM – 17/2/07)     

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