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Aqui se transcrevem textos, documentos e notícias que se referem à vida em Campo Maior ao longo dos tempos
Tenho diante de mim um documento que acabei de descobrir.
Diz ele que minha mãe e meu pai se uniram pelos sagrados laços do matrimónio, no dia 2 de Março de 1941.
Nós nunca comemorámos esta data. Aliás, não tinhamos o hábito de comemorarmos aniversários. Isso não fazia parte dos hábitos da nossa família. Descendiamos de gente demasiado pobre para nos podermos dar ao luxo de mantermos certas tradições. As famílias pobres não tinham história, para além dos nascimentos, dos casamentos, dos baptizados e das mortes. Do passado só sabiam as estórias que tinham ido acontecendo nas suas vidas.
Este papel já quase nem ostenta esta cor esverdeada em que denerou o azul dos papéis selados em que eram feitas as certidões. Nele se diz que, João Baptista Cruz, - conservador - que não deixou memória neste concelho de Campo Maior, pois nunca ouvi falar de tal criatura - certifica que, segundo o livro de registos de casamentos, pelas dezasseis horas do dia supra dito, na igreja de Nª Srª da Expectação - Igreja Matriz de Campo Maior -, casaram José Pereira Toureiro Galego (meu pai) e Palmira Rosa da Conceção de Jesus (minha mãe).
Do documento constam os nomes dos meus avós paternos (Francisco Martins Galego e Ana do Carmo Serra) e maternos (Jacinto de Jesus e Maria Catarina Durão Cainço ou Maria da Conceição Durão Cainço).
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Façamos a análise deste documento:
Na sua pobreza, trata-se de uma vulgar certidão, semelhante a muitas outras que, por todo o país, foram produzidas pelas centenas de conservadores que nele estavam encarregados de fazer a certificação de este tipo de acontecimentos.
Mas, como passei a vida a tentar convencer os meus alunos de que, qualquer testemunho do passado, se pode tornar um documento histórico, se soubermos análisá-lo, vou tentar fazer dele a leitura adequada, procurando transformar este papel envelhecido num testemunho que me ajude, a saber, um pouco mais sobre a minha existência.
Começo por saber que meu pai tinha 25 e minha mãe 23 anos, quando casaram. Sempre os ouvi dizer que já tinham casado um pouco tarde e depois de namorarem durante sete anos. Logo, nessa época, os casamentos deviam ocorrer, normalmente, por volta dos vinte anos. Também me diziam que o retardamento do seu casamento se devia ao adiamento constante que partia da minha avó paterna.
Isto levou-me a observar que, entre a data deste casamento e a do meu nascimento, havia uma evidente discordância, pois tinham decorrido apenas cinco meses. Como nunca ouvira qualquer referência a que tivesse sido prematuro, isto tinha de ser analisado.
Logo, eu teria sido concebido em condições excepcionais. Nessa época o namoro teria de ser feito à porta de casa. A casa dos meus avós maternos era no rés-do-chão de uma rua de pouca passagem e não tinha janela. Os namorados estavam separados pelas “meias-portas”, com a mãe dormitando junto à braseira e o pai já deitado, por uma questão de respeito.
Deduzo que deverá ter havido uma intenção deliberada de tornar inadiável o casamento, única maneira de resolver, entre gente honrada, uma gravidez ocorrida nas condições em que eu terei sido concebido, provavelmente numa noite fria de Novembro. Vindo a nascer, em pleno Verão, nove meses depois, no primeiro dia de Agosto.
Depois reparei que os nomes das duas gerações nele envolvidas, foram elaborados de maneiras diferentes:
- O nome do meu avô paterno era composto pelo seu nome de baptismo que eu herdei, como primeiro neto, e os patrónimos Martins e Galego. Seu pai seria apenas Martins mas, tendo vindo de Cernache de Bonjardim passara a ser conhecido em Campo Maior como o Galego e resolvera oficializar esse novo patrónimo nos filhos.
- O nome do meu avô materno era mais simples, pois nem patrónimo tinha. Apenas Jacinto de Jesus, por ter nascido no dia da procissão do Senhor Jesus da Piedade, principal cerimónia de culto da cidade de Elvas de onde era natural.
- A minha avó paterna, fora, como sua avó, baptizada como Ana do Carmo Serra. Esta minha trisavó, sua mãe, fora a primeira mulher de Campo Maior que se divorciara legalmente do seu primeiro marido, invocando irresponsabilidade e incumprimento dos seus deveres, como marido e como pai. Encontrei esta informação num jornal que se publicava em Elvas nos anos 70 do século XIX. O seu advogado fora João Dubraz, muito conhecido nessa época, como escritor e jornalista.
- A minha avó materna tinha nome mais elaborado. Ela considerava-se Ana Catarina Durão Cainço e assim consta na certidão de nascimento. Durão por parte da mãe e Cainço por parte do Pai. Como era natural de Degolados que pertencia ao concelho de Arronches quando ela nasceu, ao transferirem os dados em 1926, quando a freguesia de Degolados foi anexada ao concelho de Campo Maior, por erro de transcrição, registaram-na como Ana da Conceição Durão Cainço, nome com que aparece em alguns documentos.
Meus pais foram registados com os nomes de José Pereira Toureiro Galego e de Palmira Rosa da Conceição de Jesus, integrando no seu nome, os nomes dos pais e das mães. Repare-se que, nesta época e neste nível social, as mulheres não adoptavam os nomes dos maridos.
Estes dados são concordantes com a evolução dos registos de nascimento. Originariamente e desde a Idade Média, eram os párocos que registavam as crianças baptizadas, nos acentos paroquiais. Com o liberalismo - Decreto de 16 de Maio de 1832 - tornou-se obrigatório o registo de todas as crianças nascidas. Com o Decreto de 28 de Novembro de 1878, passou a caber aos admininistradores dos concelhos o dever de registar as crianças mesmo as que não se baptizassem. Só no século XX foram estabelecidas as normas para se proceder ao registo das crianças que devia ser feito pelos conservadores do registo civil, em cada concelho.
Como fica demonstrado, mesmo partindo de documentos muito simples, podemos elaborar um conhecimento interessante sobre a nossa própria “História de Vida”.
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