por Francisco Galego, em 15.11.14
Enviou-me o Sr. Luís Lopes Magueijo, em complemento ao texto publicado neste blogue no passado 1 de Novembro, mais algumas considerações sobre o “viver” dos ratinhos que, há mais de meio século, vinham da Beira até Campo Maior, para trabalharem nas ceifa,
É muito importante e interessante este seu testemunho e isso justifica plenamente a sua divulgação.
Aproveitei para, entretanto, recorrer aos textos de José da Silva Picão, sobre o mesmo tema porque, anteriores a estes, cerca de 50 anos, permitem ter um conhecimento mais alargado da realidade da vida, nas terras do Alentejo, no século passado. Além disso, enquanto de um lado temos o testemunho dos que vinham para alugar a sua força de trabalho, do outro temos o testemunho de quem, sendo lavrador, contratava os “ratinhos” e, observando-os, tentava descrever os seus comportamentos e condições de vida, bem como as actividades que tinham de desenvolver.
Vejamos os novos quadros da vida dos “ratinhos” traçados pelo Sr. Luís Magueijo.
- Quando um dia me deslocava do Monte com o jantar para o pessoal que, nesse dia, ceifava próximo de Ouguela, junto à Ribeira de Caia, soltou-se uma chavelha da roda do lado direito da minha carroça e esta inclinou-se nesse sentido. E eu, ali fiquei sem saber o que fazer. A hora do jantar, meio-dia,aproximava-se a passos largos e eu, franzino, não conseguia repor a roda. Até que, finalmente, apareceu um pastor do Monte que veio em meu auxílio. Repôs a roda e eu segui para o meu destino. Claro que, naquele tempo, sem comunicações, o pessoal estava desesperado por não ver chegar o granito. Até que, finalmente, eu cheguei!...
- Naquele tempo, especialmente na ceifa, não havia pratos. Estes eram substituídos por baldes em zinco, em redor dos quais nos agrupávamos em número de cinco. O mais velho desse grupo, representava o chefe. Quando a comida já estava dentro dos baldes, ele, o chefe, dava uma batida com a colher no balde e, a partir daí, todos, em sincronização, se alimentavam, num vaivém ordeiro e digno de registo.
- Os ratinhos, como se depreende, não traziam colchões. À noite, cada um fazia um rapeiro ou buraco e, com grande quantidade de restolho, improvisava o seu “colchão”. Dormíamos vestidos, mas não calçados. Para nos protegermos da orvalhada que era abundante, protegíamo-nos com os guarda-chuvas abertos. O grande incómodo durante as noites, eram as melgas a que nós chamávamos “ a Aviação Espanhola”.
- Eu tinha no lastro da carroça uma grade em madeira que estava preparada, artesanalmente, para receber as barricas da água, o pote para o granito e a água quente.E, onde é que eu ia recolher a água para o pessoal beber e para o uso da cozinha campal? Estrategicamente, o monte tinha vários poços, todos equipados com balde, corda e roldana. Eu escolhia o mais próximo do corte onde o pessoal ceifava. Ora, aconteceu muitas vezes eu chegar ao poço e ver andorinhas pequeninas mortas e a boiar. Tinha de as retirar com o balde e recolher a água que era precisa para os fins que referi. Claro que nunca disse ao pessoal o que tinha visto na água!...Mas, porque é que as pequenas aves estavam ali mortas? - Porque as andorinhas tinham grande propensão para fazer os ninhos no rebordo dos poços.
- O horário de trabalho na ceifa. Após uma noite – por vezes mal dormida – logo que rompia a aurora – o manajeiro que era o primeiro a levantar-se. Dizia três vezes, repetidamente e em voz bem audível: Arribó! ... Família! Após tal alarido, os ratinhos iniciavam – ainda que a custo – o levantamento. Calçavam-se, muniam-se das foices e dos dedilhos (protecções em cana para os dedos) e estavam em prontidão, como na tropa, para iniciarem mais um dia de ceifa. O manajeiro era o primeiro a iniciar a tarefa. Quando já todos ceifavam, ele dava um passo atrás, colocava a foice no antebraço, acendia um cigarro e, a partir daí, assumia o seu lugar de chefe. Só na manhã seguinte repetia o acto. Por volta das nove horas, chegava eu do Monte com o pote e a água a ferver, temperada de sal e alhos e com um corno enorme cheio de azeite. Levava também um tarro com azeitonas galegas, grande quantidade de queijos secos e dois ou três sacos de pão, ainda quentinho (o marrocato) que tinha vindo de Campo Maior e que parecia ter sido feito, haveria cerca de uma hora. Por volta do meio-dia, chegava eu com o dito pote que trazia dentro o bem confeccionado granito, com beldroegas e a ferver e um ou mais tarros cheios de toucinho, morcelas, farinheiras, chouriças. Tudo caseiro e em abundância. Nesta altura do repasto havia um descanso de três horas. À tarde era a refeição fria mas com todos os complementos – pão, azeitonas e enchidos – que já tinham feito parte da logística anterior. Neste repasto, o descanso era de uma hora. Depois … Bem!... Depois, era ceifar até as estrelas no céu nos dizerem: Basta! Basta! Já chega! Era, realmente duro e severo. Mas, estava escrito: Cumprirás e não protestarás!
- Na véspera de terminar a contrata, ou seja, quando se dava por terminada a ceifa, era de tradição, deixar para o dia final, uma franja de cereal – no caso era cevada – para que nesse dia, logo que se iniciava, se terminar, simbolizando os quarenta dias de missão cumprida.
- Quando cheguei ao Monte, e já como manteeiro, foi-me entregue a carroça e uma égua velha que eu baptizei de Coitada! … Estava muito magra!... Logo no primeiro dia de trabalho nasceu entre mim e ela uma grande amizade. Por instinto, logo percebemos que nos íamos dar muito bem. E, assim foi! ... Logo que descobri que andava mal alimentada, sem que o manajeiro e o feitor se apercebessem, eu colocava um molho de cevada à frente dela e, curiosamente, só trincava a espiga. Eu voltava depois a recolocar o molho no rolheiro (o monte de cereal), pronto para seguir para a eira do Monte. E assim, a Menina passou de magra a gorda!
Luís Lopes Magueijo, Seixal, Foros de Catrapona, 30 de Outubro de 2014