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CARNAVAL DE OUTROS TEMPOS - I

por Francisco Galego, em 26.02.17

No meu tempo de infância, numa designação  mais popular, era chamado de “O Entrudo”. A gente que se tinha por mais ilustrada designava-o como “O Carnaval”.

Nos jornais do século XIX, encontram-se referências ao Carnaval de outros tempos, em Campo Maior. Trata-se geralmente de um Carnaval “bem comportado”, de gente séria que não cometia desmandos e que desdenhava e censurava “as grosseiras e violentas diversões das gentes rudes do campo, sem sentido das medidas e sem educação”.

Por exemplo:

 No domingo gordo inauguraram-se nesta vila os bailes públicos de máscaras. O primeiro teve lugar no teatro (do castelo), levado a efeito pela Sociedade Artística, auxiliada por alguns não artistas, os quais, em comissão mista, tomaram a direcção do espectáculo. O teatro estava ornado sem luxo, mas com asseio e bom gosto e manteve-se em toda a noite na mais rigorosa decência. À entrada do salão de baile (plateia superior), cada máscara dizia o seu nome ao presidente da comissão.

A filarmónica artística, vestida uniformemente, deu começo ao espectáculo com uma sinfonia: levantado o pano, um artista, moço de merecimento moral e intelectual, entrou em cena com os emblemas que representam o tempo e figurou as quatro estações do ano… com versos alusivos.

Depois começou o baile que durou até às 2 horas da noite. Nos intervalos houve quadros vivos…

“No terceiro dia de Entrudo teve lugar o segundo baile de máscaras. Foi brilhante, foi até esplêndido e houve um grande concurso de espectadores. Desta vez, o número de Máscaras não baixou de sessenta: apareceram costumes variados e de bom gosto e houve muita animação. O ardor dos dançadores chegou a ser por vezes frenético… o movimento e alegria foram constantes…

À comissão que dirigiu os espectáculos, todos os louvores são devidos: nunca os houve em Campo Maior com mais ordem…” (In A Voz do Alentejo, 1866).

 

Muito raramente aparecem referências às outras manifestações do outro Carnaval, o Entrudo rude e violento.  Principalmente à celebração da “5ª- feira das comadres”, pela gente mais ligada ao trabalho nos campos, que eu ainda presenciei, em toda a sua pujança, nos tempos da minha infância.

Nesse tempo, quando se começavam a ouvir os estrondos do rebentar das bombas e os gritos chistosos com que a rapaziada perseguia as vítimas das impertinentes partidas, sabíamos que o Entrudo tinha começado.

Os “lárga-los” consistiam em rabos dos animais esfolados, trapos, ou escritos com frases como “Sou burro”, “Fujam que marro”, que os brincalhões se entretinham a pregar nas costas dos incautos que eram escolhidos para vítimas. A tarefa de pregar estes objectos nas costas das pessoas, sem que estas o pressentissem, exigia descaramento, astúcia, rapidez e perícia. Depois, o desgraçado a quem se pregava a partida, ia passando pelas ruas sob a chufa dos gozadores divertidos que gritavam, “Lárga-lo!... Lárga-lo!” evitando que este percebesse que era ele o alvo desta gozação.

O rapazio adorava o perigoso jogo de lançar bombas e de fazer rabear os busca-pés, com que procuravam assustar as pessoas. E não apenas nas ruas. O hábito que nesse tempo havia de manter abertas as portas que davam para a rua, dava azo a que, os mais violentos, deitassem esses objectos para dentro das casas, provocando  grandes sustos e alaridos. Os gritos das mulheres assustadas e as correrias dos malandros que procuravam fugir sem serem identificados,  punham as ruas em alvoroço.

De noite formavam-se as trupes de mascarados que percorriam as ruas metendo-se com quem por eles passava. Caraças, mascarilhas, pinturas e óculos serviam para esconder a identidade, permitindo atitudes que não se assumiam de cara descoberta. Os homens e as mulheres aproveitavam para se travestirem envergando roupas velhas e grotescas, disfarçando a voz, aproveitando este período de maior liberalidade de comportamentos que não eram admitidos em situações normais de convivência, como o hábito de mascarrar e de enfarinhar permitindo um contacto físico entre os sexos que estava de todo vedado em condições normais no resto do ano. Por vezes, esses bandos de foliões entravam de rompante pelas casas, sendo recebidos em alarido pelos moradores e pelos vizinhos que acorriam a participar na festança. Se a trupe ia acompanhada de tocadores, podia mesmo improvisar-se uma bailarada.

 Mandava o decoro que se respeitassem as pessoas e as casas dos que, por razões de doença ou de morte, estivessem em situação de resguardo ou de luto.

Os grandes dias do Entrudo eram a 5ª- feira das Comadres e a 5ª- feira dos Compadres. Na das Comadres, os homens organizavam-se em bandos para a chocalhada: cobertos de capas oleadas e que, fazendo soar grandes chocalhos e mangas, iam pelas ruas provocando as mulheres que respondiam ao desfio lançando sobre eles baldes de água, nem sempre limpa, cinza, pó de carvão, farelos e serradura e outras coisas menos próprias que não convém designar. Agrupadas em certas casas, as mulheres colocavam à janela estandartes de panos coloridos, enfeitados com vistosas fitas e outros ornamentos, desafiando os homens a que os tentassem alcançar. Iniciava-se então uma feroz contenda em que os que estavam em baixo procuravam a todo o custo subir para alcançar o apetecido troféu e as que estavam em cima tudo faziam para impedir que tal objectivo fosse concretizado.

Na 5ª-feira dos Compadres o estandarte era substituído por um espantalho e de novo se desencadeava a contenda.

 

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