Quando escrevo este texto é Quarta-feira de Cinzas. Terminou o Carnaval. Guardadas as máscaras e os trajes exibidos pelas figuras grotescas do Entrudo, a vida vai agora voltar à normalidade.
Aqui em, Campo Maior, o Carnaval decorreu com alguma animação, mas sem as grandes manifestações de festa que eram os Carnavais de outros tempos.
Os desfiles que percorreram as ruas foram interessantes e animados. O de sexta-feira, dedicado às escolas do concelho, teve a função pedagógica de levar as crianças a participar na criação e preservação das tradições culturais da comunidade a que pertencem. O de sábado, para os adultos, foi bastante animado e participado. De acordo com a sociedade democrática em que vivemos, perdeu por completo o carácter elitista que tinha em meados do século passado.
Por razões que se podem facilmente entender, o Carnaval campomaiorense que, por tradição e por natureza tem um carácter muito “caseiro”, começa cedo e cedo acaba. Evita assim entrar em concorrência desigual com manifestações semelhantes em terras vizinhas, as quais, com Carnavais mais apelativos, reservam o Domingo Gordo e Terça-feira de Entrudo para as suas realizações.
As manifestações carnavalescas no tempo da minha juventude aqui, em Campo Maior, tinham como já referi na minha colaboração anterior neste jornal, as marcas do tempo que então se vivia no nosso país e que se traduziam numa profunda estratificação social baseada no poder económico e político e na importância social que esse poder conferia às pessoas. Daí que entre o Carnaval das elites e o Entrudo dos pobres, existisse uma completa separação. Contudo, noutros tempos bastante anteriores, o Carnaval tinha tido um fulgor e intensidade muito maior. Vejamos como o primeiro jornal que se publicou em Campo Maior, o “Campomaiorense” descreveu o Carnaval de há oitenta anos:
“A época carnavalesca teve este ano um brilho desusado e que há muitos anos não tinha nesta vila … Fez-se uso dos saudosos pós pretos, malagueta queimada, talos de couve, águas sujas lançadas das janelas sobre os transeuntes, …esguichos e enfarruscadas…arremessaram-se ovos de cinza e até ovos de verdade…
No domingo e na terça-feira de Carnaval houve festivas batalhas de flores no corso elegante da Canada, onde uma enorme fila de algumas dezenas de coches, landaus, berlindas e cadeirinhas, volteavam para baixo e para cima num rodopio de carrossel. Deram viva nota os carros da elite feminina que se esmerou nas ornamentações a capricho e na confecção das toiletes garridas das senhorinhas. As crianças participaram como cúpidos, pierrots e pequenas fadinhas, animando o ambiente com a sua inocente alegria e as suas estridentes risadas.
Muitos caros artisticamente ornamentados, participaram neste cortejo, brincando-se muito por toda a parte, dos carros para as janelas e das janelas para rua, travando uma autêntica batalha de papelinhos, tremoços, violetas, rebuçados e bombons.
Pelas ruas, mascarados sem conta, luzidias cavalgadas, paródias, cegadas.
Bailes em quantidade. Os que se realizaram em casa dos Srs. Viscondes de Olivã primaram pela distinção. Houve também bailes nas casas do Sr. Barbas, do Sr. José Ramos e na do Sr. João Martins Leitão, nos quais se dançou e cantou até altas horas da madrugada.
Os bailes no Teatro do Castelo foram espampanantes de entusiasmo e os concursos de máscaras provocaram grande entusiasmo. Dançou-se o foxtrot, o two-step, o jazz-band, bem como danças regionais e nacionais.
No Grémio brincou-se, riu-se e dançou-se. Disseram-se frases de espírito e esboçaram-se alguns namoros. Várias senhoras da nossa melhor sociedade cantaram árias e canções para deleite dos que as puderam escutar.
Quando o baile terminou – 8 da manhã! – já o sol doirado e brilhante se espraiava alegre e contente pelas ruas da vila.
Para em tudo ser completo, o Carnaval terminou no enterro do Entrudo com a sua imponência macabra e tétrica, como se pode ajuizar pelas centenas de fantasmas envoltos em lençóis brancos, formando duas longas filas, conduzindo tocheiros acesos, numa guinchadeira de pranto infernal…
Atrás o esquife funerário seguido pela banda que executava com muito sentimento e profunda mágoa a marcha fúnebre de Chopin…
De vez em quando o cortejo parava para ser entoada a magistral oração do bacalhau a pataco por um sumo-sacerdote de voz de cana rachada.
Acabou-se o Carnaval. O Entrudo ficou morto e enterrado. Que descanse em paz até ao novo ano.”
Este texto reporta-se aos anos de 1923 e 1924. Portanto, a uma época em que a nível político existia ainda um regime democrático, mas em que começavam a germinar as sementes da situação de crise que iria culminar, três anos depois, numa ditadura de cerca de meio século de duração. Já se antevê a tendência para que uma elite se afirme como grupo dominante na sociedade portuguesa.
Hoje, perdeu-se a tradição de fazer que o Carnaval, chegada a terça-feira, desse ainda um ar da sua graça com uma cerimónia muito solene, mas muito chocarreira, promovendo a sua despedida com o Enterro do Entrudo, também designado como Enterro de Bacalhau.
Depois do Carnaval, a Quaresma. Depois dos excessos e dos exageros de todas as formas, vem um tempo de sossego e de contenção. É desta alternância que se faz a vida dos homens e se organiza a vida em sociedade.
Contudo, à mocidade embalada pelos dias de folia, custava-lhe a despedida do Carnaval. Procurava a todo o custo prolongá-lo evitando mergulhar no período de abstinência que se ia seguir até à Páscoa. Assim, no primeiro domingo da Quaresma, faziam-se nas sociedades recreativas, bailes muito concorridos, os bailes da pinhata.
Esta parece ser uma tradição que se constituiu por influência de Espanha, se nos reportarmos a uma notícia publicada num jornal de Elvas, o Transtagano, de 24 de Fevereiro de 1861, onde se escreveu que este é o nome que tem o baile de máscaras que, no reino vizinho, pelo menos em Badajoz, costuma ter lugar no primeiro domingo de Quaresma. A dar fé neste documento, nessa época a tradição dos bailes da pinhata ainda não estava implantada em Portugal.
E, pronto! Foi-se o Carnaval. Esta crónica que vai ser lida quando o Carnaval já estará morto, enterrado e esquecido, será como que a nossa crónica da pinhata. Até ao próximo ano não voltaremos a falar do Carnaval.
Campo Maior, 21 de Fevereiro de 2007
Região em Notícias de Campo Maior 2 de Março de 2007