João Dubraz, enquanto cidadão e enquanto escritor, interessava-se pelos mais diversos temas e manifestava a sua opinião sobre as mais inesperadas questões. Por vezes, deixa-nos a sensação de que havia assuntos sobre os quais estava muito adiantado em relação ao que seria de esperar dos homens do seu tempo. Tanto mais nos surpreende quanto sabemos que a sua vida decorreu, praticamente toda ela, entre os muros da pequena e muito isolada vila de Campo Maior. Causa espanto que, vivendo longe dos grandes centros culturais, pudesse ter acesso a tão vasta informação e formular opiniões tão avançadas sobre problemas tão diversificados, sobretudo porque essas opiniões têm, em grande parte dos casos, um carácter acentuado de pensamento de vanguarda. Podemos, de certo modo, constatar que os homens de eleição mesmo que as condições em que vivem não sejam as mais favoráveis, tendem a perceber as coisas para além do tempo e do local em que lhes coube viver.
Para além disto, surpreende também o volume da sua produção. Além de dispersar colaboração com textos seus por diversos jornais, no jornal elvense “A Democracia” que se publicou entre os anos de 1869 e 1877, chegou a preencher, com os seus textos, praticamente a quase totalidade de três das quarto páginas que compunham o jornal, pois eram de sua autoria, o “Editorial”, o “Folhetim”, a Crónica da Política Externa” e o comentário dos principais acontecimentos parlamentares e governamentais que iam acontecendo no país.
Como amostra do que atrás escrevi, quanto à diversidade dos seus temas e dos seus interesses, transcrevo algumas passagens de um texto seu, publicado na página 4 do nº 39 do jornal “A Democracia Pacífica – Jornal do Alemtejo”, de Elvas, 28 de Junho de 1867, em que, numa caricatura muito irónica e mordazmente critica, nos revela o seu pensamento sobre temas, hoje tão actuais, como as questões ecológicas e os problemas ambientais.
O texto tem como título “Tipos Contemporâneos – O Arboricida
[1]”.
Admirem a actualidade destas passagens, onde se fizeram as actualizações necessárias a uma melhor compreensão da prosa:
“O arboricida nasce como nasce o poeta e o estafador de rimas, o orador e o falador secante, o guerreiro e o poltrão, o homem de Estado e o caturra político, o progressista e o rotineiro, o activo e o indolente, o talentoso e o parvo.
Ainda nas fraldas infantis, nos braços da mãe ou da ama-de-leite, já os instintos destruidores do arboricida se revelam contra toda a planta que se assemelhe a árvore. (…) Decorrido o tempo, o menino tornou-se réu de diversos crimes desta espécie durante as férias das suas tarefas escolares. Por vezes arrepelou as plantas dos canteiros do quintal paterno, atribuindo o estrago ao sujo esgravatar dos gatos. Noutras vezes, encaminhou a mão do irmãozinho para que este faça diante de tidos o que ele próprio receia fazer. Mas, o que sobretudo o atrai é a pequena árvore pública por que roça ao ir para a escola, pois que a vê frágil, apoiada por uma cana, tão maneira, tão sedutora! Daria o mais predilecto dos seus brinquedos para medir a sua força com a resistência que a estaca oferece. Porém, o medo impede-o de tentar. Dizem-lhe na escola que irá para a cadeia onde dão açoites aos meninos que ousem fazer aquilo que ele tanto deseja. E, todavia, o pequeno facínora, que já teme a penalidade e só perante ela recua, apenas orça pelos dez anos! …
Atormentado pela fatal arboricida mania, mas satisfazendo-a sempre que pode, passou o agora adulto arboricida, anos e anos. Inúmeros têm sido os seus malefícios, tantos e tais quantos os que lhe tornou fácil a sua impunidade. Fez-se cínico. Não oculta já, por vezes até exagera, a má paixão que o domina. Desenraíza, abate ou mutila por toda a parte, conforme o capricho do momento. Transformou a bengala em arma ofensiva que, na sua mão, se transformou em instrumento destruidor. Se passeia num jardim, não se pode suster sem decepar alguma vergôntea ou ramo inofensivo: degola sem piedade a flor que se alteia. E, com tão criminosa existência, atingiu os vinte anos sem rugas, sem cabelos brancos e sem remorsos! …
O hábito do crime endurece mais e mais este tiranete sui generis. A impunidade reduplicou-lhe a ousadia. Abalar pequenas árvores que orlam as praças e caminhos, quebrar-lhes as vergônteas, matá-las impiedosamente, são passatempos de insípida vulgaridade. Como os Átilas, os Napoleões e outros tiranos, sonha com campos juncados de mortos: as selvas devastadas e os campos espezinhados deliciam-lhe o pensamento, Quando viaja, se alguma vez, com gesto desdenhoso procura a árvore copada para sob ela conciliar o sono à sua sombra, que sonho pensais que o faz sorrir e arquejar suavemente? … O de imaginar que o seu viçoso dossel foi presa das chamas ou que os seus ramos são desfeitos contra as rochas pelo desbastador do mato, ou que, por acção do carvoeiro, viu transformar-se em carvão o que antes fora planta com vida. Para o arboricida, é terrível acordar vendo incólume a árvore habitante do belo vale. Então, o raivoso tirano evoca as tradições de Nero e diz, parodiando o que aquela fera sanguinolenta terá dito ao ver a cidade de Roma que ardia:
Se eu pudesse reunir num só tronco todos estes parasitas que a terra alimenta, pediria a Deus que me desse um braço bastante forte para os aniquilar de uma vez.
Inspiraram-me estas ideias que acabo de expor, um passeio pela estrada de Campo Maior a Elvas. Havia há pouco tempo, junto ao hortejo dos herdeiros de Vaz Touro, uma superfície de uns cinquenta centiares de terra, coberta toda de choupos, plantados pelo condutor Caldeira quando fez a estrada. Em terra tão pobre de arvoredo como é Campo Maior, a vista pousava deliciosamente naquele pequeno oásis. O que julga o leitor que fui encontrar? … Vi uma hecatombe lastimosa: vi quase todas as árvores abatidas … provavelmente para restituir o mesquinho terreno à cultura de aveia ou cevada! Os cadáveres lá estavam ainda, mutilados e em montão, quase escondidos a um canto do lugar do suplício. Considerei-os por alguns instantes com dor de alma. Via ali a obra de um tugue
[2] de nova espécie. Quem é? Como se chama? Não sei. Que importa o nome do arboricida, se o seu malefício é já irreparável!”
Este texto foi escrito há precisamente 141 anos. E, contudo, quanta actualidade podemos encontrar nas suas palavras!...
Ao lê-lo, vieram-me à mente os versos de Camões em que muitas vezes costumo reflectir para constatar que encerram uma grande e inquestionável verdade:
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.
Assim é decerto. Mas, há coisas que mudam tão lentamente que mais parecem estar paradas. Entre elas o pensamento e a atitude de alguns homens, faz crer que a própria mudança não existe.
Que escreveria João Dubraz se agora voltasse?
[1] Esclareço, não porque duvide da competência cultural dos leitores, mas para que não subsistam dúvidas ou confusões: Arboricida = O que destrói ou mata árvores. Grande Dicionário da Língua Portuguesa, José Pedro Machado, (Coord.), Ed. Circulo de Leitores, 1996, pág. 353.
[2] Tugue, do inglês thug, membro de uma extinta associação religiosa de estranguladores da Índia. Idem, pág. 461