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Aqui se transcrevem textos, documentos e notícias que se referem à vida em Campo Maior ao longo dos tempos
Textos do escritor campomaiorense João Dubraz, publicados no jornal
A DEMOCRACIA PACÍFICA, há 148 anos.
Nº 10 6ª, 14/12/866
Elvas 13 de Dezembro
Ninguém pode duvidar de que à testa do governo se encontram as primeiras inteligências do país; talvez com poucas excepções. Mas, o que ninguém duvida também, é – do que pela experiência tem mostrado já, da parte dos cavalheiros que compõem o ministério – a sua incapacidade para levarem a efeito as teorias brilhantes e sedutoras com que nos extasiam. O país está farto de teorias e de rapaziadas, porque na verdade não se pode dar outro nome a certas medidas a que o governo tem dado uma importância que, nem mesmo em teoria, a podiam e deviam ter. (…).
Que são as portarias do Sr. Martens Ferrão senão puros partos de imaginação em que só acredita alguém que não tenha a menor prática dos negócios públicos!
Nº 20 2ª, 18/2/867
Editorial
Elvas, 17 de Fevereiro
(…) “Economias! Reformas! O deficit a crescer perigosamente e as reformas a abrir um largo abismo no fosso da perdição.
(…) Onde está o programa dos vossos festins reformadores, onde estão essas largas economias com que devíeis melhorar o estado precário da fazenda pública, onde está a felicidade do povo, ao qual vos apresentastes quais outros Messias?
Falemos sério. A existência do partido fusionista, ou reformador ou das economias ou como lhe queira chamar, é um cartel de desafio arremessado aos brios do país.
Respeitadores severos dos poderes constitucionais, não podemos ver a sangue frio, como a ambição e o vício de governar, podem comprometer o manto em que se envolvem e o trono, atrás do qual se escondem.”
Os habitantes desta parte de Portugal que, por conveniências administrativas, constitui hoje a «Província do Alto Alentejo», foram, desde tempos remotos, muito dados às artes plásticas e industriais. Região onde a matéria-prima não escasseava – mármores e barros em especial - não admira que a abundância lhes despertasse inclinações e vontade de traduzirem objectivamente as suas idealizações e concepções estéticas, em ordem não só à recreação do espírito, mas também à utilização das suas criações na vida prática e doméstica.
Foram, sobretudo, os trabalhos de cerâmica que, entre o povo, mais se generalizaram, visto as argilas aluminosas[1] [figulinas[2] e margas[3]] estarem ao alcance de todos, serem de mais fácil exploração e servirem à feitura de objectos decorativos, que nos encantam pela beleza e harmonia das formas [estatuetas, imagens, jarras, azulejos, baixos relevos, etc.], assim como à confecção de artefactos de reconhecida utilidade prática em usos domésticos e industriais, tais como: bilhas, pichéis[4], azadas, potes, louça variada, telhas e tijolos.
Tudo leva a crer que o aperfeiçoamento da arte da olaria só começou nos primórdios do século XVII, assinalando-se depois esse aperfeiçoamento nas faianças e nos azulejos de Estremoz, nas cantarinhas de Nisa, nas bilhas de Viana, etc.
Há conhecimento de ter existido uma fábrica de cerâmica em Estremoz, a da Viúva Antunes, de que parece haver peças datadas de 1770, segundo nos diz Joaquim de Vasconcellos, em “A Cerâmica Portuguesa e a sua Aplicação Decorativa”. No Museu Municipal desta cidade podem ver-se algumas peças de perfeito vidrado e de interessante colorido que se atribuem àquela fábrica: pratos, travessas, terrinas, um gomil[5] e uma cantarinha, esta com a marca Viúva Antunes, não oferecendo, por isso dúvidas da sua proveniência.
Desta Fábrica podem ter saído os azulejos que se vêem nos lambriz[6] de alguns edifícios locais. Mas há quem pretenda ter existido outra fábrica pelo facto de se guardar no referido Museu um painel, provindo de uma fonte na horta junto à Ermida dos Mártires, no qual se representa «Nossa Senhora do Carmo a entregar o escapulário[7] a São Simão Stock, que foi o primeiro geral da Ordem dos Carmelitas», tendo inferiormente a legenda “Ecce Salutis”, a marca “Fabrica de Frei Luiz Pernarcho”, e datado 1779.
Ignoramos se existe algum documento que confirme esta suposição. Em nossa humilde opinião, o termo Fabrica, que se lê no painel, pode querer significar que o desenho, a traça, a pintura, se deve ao aludido padre, por quanto nos parece que a função de fabricante ou industrial era incompatível com o voto de humildade, de pobreza e de renúncia dos bens terrenos, que se exigia aos religiosos professos.
Também temos noticia de que já nas primeiras décadas do século XIV, se faziam pucarinhos e moringues de Estremoz[8], que iam à mesa da Rainha Santa Isabel, ganhando celebridade em terras de Espanha, Itália e França, onde as classes ricas pagavam por alto preço essas graciosas peças de cerâmica alentejana.
Nas primeiras centúrias da nossa nacionalidade a olaria circunscrevia-se ainda ao fabrico de louça grosseira, vasilhame, telhas e tijolos para a construção de habitações, fabrico que deve ter sido ensinado aos aborígenes pelos romanos e mais tarde pelos árabes, quando vieram estabelecer-se na Península Ibérica, como se deduz pelo grande número de objectos que tem sido encontrados nas escavações de diversas estações arqueológicas disseminadas pelos termos de Évora, Montemor, Estremoz, Vila Viçosa, Elvas, Marvão e outras terras de Alentejo, de que podem ver-se alguns exemplares nos museus regionais e da capital [temos visto: púcaros, candeias, e fragmentos de tijolos, etc.].
Há anos foi achado numa escavação nas proximidades do Monte de Santa Vitória, por detrás da quinta denominada da Rainha ou de São João, arredores de Campo Maior, um dollium[9] do período lusitano - romano, que oferecemos ao museu municipal de Elvas, exemplar muito bem conservado. Só conhecemos outro semelhante que existe no Museu Etnológico de Belém.
Estas vasilhas foram, talvez, as ascendentes genealógicas dos potes ou talhas mouriscas, que se vêem em todas as adegas do sul do país e cujo fabrico constitui uma indústria típica e secular da rica e linda vila fronteiriça de Campo Maior e da Aldeia do Mato, no concelho de Reguengos. Curiosas e características, as talhas alentejanas, de barro grosseiro, a que o tempo dá um tom escuro, chegam a ser de altura superior a de um homem normal e o seu bojo avantajado e monumental chega a conter mais de cem almudes, ou seja dois mil litros de precioso vinho. [Na adega do Sr. João Garcia Augusto, em Estremoz, existe uma com a capacidade de cento e treze almudes!].
Assim, impressionaram por tal forma o iminente escritor Júlio Dantas que, ao vê-las pela primeira vez numa sombria adega de Évora, lhe fizeram escrever numa das suas brilhantes crónicas para o «Comércio do Porto que “no jogo das sombras flutuantes da subterrânea adega, lhe deram a impressão de figuras mociças e ventrudas[10] de silenos[11] aguentando nos ombros uma pesada arquitrave».
O fabrico destas interessantes vasilhas não é privilégio da Aldeia do Mato, como supõe o ilustre académico, talvez por desconhecer que também se fazem em Campo Maior, que as exporta desde tempos longínquos para grande parte do Alentejo, e não só para esta província, como para algumas terras da Beira Baixa, do Ribatejo e até para a Estremadura Espanhola.
Velhas pois de séculos, diferenciam-se as de Campo Maior das de Aldeia do Mato pela euritmia[12] das primeiras que nos oferecem uma silhueta mais esbelta, sobretudo nos mais recentes modelos, a que o artífice, intuitivamente e sem conhecer a arte romana, vai imprimindo formas clássicas e elegantes que fazem lembrar as ânforas milenárias. Diferenciam - se também pelo facto das últimas ostentarem na garganta a data fabrico e as curiosas siglas dos desconhecidos artífices que as modelaram em suas mãos hábeis, enquanto que as que de Campo Maior exibem os nomes completos dos vários oleiros através dos quais, por tradição de família, se tem transmitido, através dos séculos, o uso desta profissão e que são: - os Centenos, os Pereiras, os Mouratos , e, quiçá, outros que desconhecemos. Dá-se também a circunstância das desta ultima localidade se fabricarem com maior capacidade do que as de Aldeia do Mato, devido à melhor qualidade dos seus barros, desconhecida pelos mestres aldeiamatenses.
E pena, realmente, que as de Campo Maior não tenham sido também datadas; e, para subsídio de investigações futuras e melhor documentação campomaiorense, lembrar aos nossos conterrâneos que é conveniente gravar nas talhas, além dos nomes, a data do fabrico [basta só o ano] e o nome da nossa histórica e progressiva vila, que foi agora alvo de uma grande honra: É que, na Exposição Internacional de Paris, do corrente ano, por iniciativa louvável do Secretariado da Propaganda de Portugal, Campo Maior mostrará aos muitos milhares de visitantes da Exposição – a par da graciosidade dos moringues e bonecos de Estremoz, dos caprichosos empedrados das cantarinhas de Nisa, e da elegância das bilhas de Viana - as formidáveis talhas saídas das suas oficinas, que deverão assombrar pela novidade e pelas suas descomunais proporções.
Foi este facto muito agradável ao nosso estranhado bairrismo, que nos sugeriu o singelo e despretensioso artiguelho que hoje damos à publicidade e que estamos prontos a rectificar se alguém aparecer a esclarecer-nos sobre as deficiências com que topamos na sua elaboração.
Texto publicado por João Ruivo em “Arquivo Transtagano”, Ano V, Nº 1 de 15 de Maio de 1938
[1] Dizem-se aluminosas por conterem alúmen, ou partículas que brilham
[2] Diz-se figulino o barro macio e fácil de amassar.
[3] As margas são argilas calcárias.
[4] O pichel é uma pequena vasilha ou cântaro para vinho.
[5] O gomil é um jarro para água, bojudo e de boca estreita.
[6] O lambril é a parte inferior de uma parede.
[7] Tiras de pano que os sacerdotes e outros religiosos usam sobre os hábitos.
[8] Refere-se aos tradicional barril de Estremoz e que em Espanha é chamado porrón.
[9] Vasilha grande onde os romanos guardavam o vinho.
[10] Figuras maciças e bojudas.
[11] Monstros gigantescos, metade homem e metade bodes.
[12] Harmonia, equilíbrio de proporções da diversas partes.
Fica situada a vila de Campo Maior na fronteira oriental de Portugal, na sua maior largura, a 220 quilómetros do Cabo da Roca. É vila do norte da província do Alentejo, sede de concelho, comarca de Elvas e distrito de Portalegre, donde dista 50 quilómetros. Ergue-se sobre duas colinas que dominam num largo raio os formosos campos da planície alentejana. Quem subir ao seu castelo, nos lindos dias da nossa primavera, desfrutará um soberbo e majestoso panorama: a sua vista pousará logo, junto das muralhas, sobre os campos de trigo e dos prados verdejantes; passará pelos olivais e vinhas e irá perder-se, através de infindáveis montados, nas longas campinas do território espanhol. O clima é benigno apesar das amplitudes nítidas de temperatura que lhe dão um carácter de excessividade. Nos meses de inverno, principalmente em Dezembro, o frio chega a arroxear as unhas das mãos e no verão, “caem os pássaros assados”, como diz o povo em sua linguagem simbólica.
A constituição geológica do termo da vila, é de antigos terrenos pertencentes à Meseta Ibérica ou Planalto Central Ibérico, em volta do qual se formaram as condensações que vieram constituir a Península.
O solo é de terrenos calcários, argilosos e arenosos donde provêm o seu uberismo[1] e variedade de produtos, pois que, ali se cultivam todos os da flora mediterrânea.
As águas não abundam e, exceptuando as quintas e as hortas onde, no verão, a água é captada de nascentes por meio da clássica nora, as terras não podem ser regadas, motivo porque só se cultivam os cereais e outras plantas que apenas necessitam de água durante a época das chuvas.
Todo o concelho de Campo Maior é essencialmente agrícola e toda a sua riqueza é filha da terra mãe. É abundante em cereais, azeites, vinhos, carnes de porco e excelentes frutas. Nas hortas e quintas cultivam-se os legumes e as hortaliças para abastecimento do mercado local. E, para que nada falte das benesses que a terra dá, na primavera florescem os vales e os outeiros, transformando a região num grandioso jardim. Refere a tradição que, passando antigamente por estes sítios em vistosa cavalgada, D. Afonso V tanto se admirou deles e da sua formosura em hortas e jardins que lhe chamou “campo de flores”.
As suas indústrias são derivadas da agricultura e só no último decénio se têm desenvolvido com certa rapidez. Os lavradores começaram a fugir à rotina e a adoptar novos métodos com maquinaria moderna – tractores, ceifeiras e debulhadoras – nos serviços agrícolas. Os antigos lagares para fabrico do azeite, insalubres e anti-higiénicos, foram substituídos por outros mecânicos e em conformidade com as exigências da técnica moderna. Uma bela fábrica de moagem de trigo veio tomar o lugar das arcaicas azenhas, tendo também progredido as indústrias de conserva de frutas em compota, fábrica de cal branca e de cal preta e a dos “potes” (talhas de barro) onde se fabrica o vinho. O comércio vive da agricultura e da indústria locais. Exportam-se grandes quantidades de cereais, azeite, vinho, animais vivos – principalmente porcos –, conservas de fruta e talhas de barro. Importam-se, só para os gastos da terra, máquinas e alfaias agrícolas, géneros de mercearia, lanifícios, algodões e ferragens.
Tem Campo Maior, nas quatro freguesias[2] que constituem o concelho, uma população de 8.000 habitantes aproximadamente. O maior número destes cabe às duas freguesias que formam o centro urbano. As outras duas poderão ter um milhar e meio de pessoas, pouco mais ou menos. Podem considerar-se nesta povoação três classes sociais distintas: a dos lavradores, a dos proprietários e dos trabalhadores rurais ou jornaleiros; e, se quisermos, uma quarta classe social, “a dos artífices” ou operários – ferreiros, carpinteiros, alfaiates, sapateiros, etc. …
No século passado foi a classe dos proprietários que predominou, quando foram parcelados e divididos pelo povo os grandes baldios e latifúndios que andavam incultos. Esta reforma, porém, como não foi acompanhada das necessárias medidas económicas e financeiras de protecção aos novos proprietários, não produziu plenamente os resultados que se esperavam. E assim é que, muitos dos possuidores dessas parcelas não tendo capital para o seu amanho, tiveram de aliená-las mal as receberam e a outros foram-lhe executadas e vendidas judicialmente para pagamento de contribuições relaxadas. Desta forma, as glebas foram-se acumulando num número cada vez menor de indivíduos, trazendo como resultado a diminuição do número de ricos e o aumento do número de pobres. Consequentemente, a classe dos jornaleiros começou a predominar e hoje a família rural é a mais numerosa.
Pode, todavia, afirmar-se que alguns benefícios trouxeram a Campo Maior esses parcelamentos, porquanto, é só nas épocas do cultivo e das colheitas dos produtos das terras desses novos proprietários que conseguiram mantê-las – uns porque arranjaram crédito, outros com algum rendimento que já possuíam –, que o trabalho abunda. Como há trabalho, há sorrisos de paz em todos os rostos e pão, azeite e lume nos lares de todos os pobres. É que o trabalho continua sendo o grande regenerador dos homens! E o trabalhador da nossa terra, bom por índole, só tem maus pensamentos e maquina na vindicta quando o deixam ocioso e vê seus filhos famintos sem que lhes possa dar pão.
[1] Palavra, ao que parece, inventada por João Ruivo, para significar que se trata de uma terra de grande fertilidade, ou seja, ubérrima.
[2] João Ruivo refere quatro freguesias. Ouguela, só em 1941 foi anexada à freguesia de S. João Baptista.
A referência feita pelo blogue “De Campo Maior”, ao texto que antes aqui foi publicado sobre “A Feira”, sugeriu-me escrever um texto usando o título das crónicas que, há muito tempo, fazia na televisão um mestre que tive na Faculdade de Letras de Lisboa e que muito contribuiu para a minha formação: o grande escritor e poeta Vitorino Nemésio.
Com alguma saudade e muita consideração, vou responder ao “De Campo Maior” começando assim:
Se bem me lembro…
Havia efectivamente, creio que, pelo menos, três "gaviões" na Avenida.
Os “gaviões” eram uma espécie de barracões em madeira, de considerável dimensão que corresponderiam, pela sua função, aos actuais “quiosques”. Aliás, os locais onde actualmente estão os que são bares, na parte oriental da Avenida da Liberdade, são os locais onde ficavam dois desses “gaviões”.
Ao contrário dos actuais “quiosques” que quase só funcionam no Verão, os “gaviões” funcionavam todo o ano. Uns tinham uma categoria semelhante à das tabernas mas um deles era mais do tipo “café e restaurante”. Chamava-se "Gavião Branco". Nas primeiras décadas do século XX, era considerado o local frequentado pelos homens considerados "notáveis" na vila. Digo homens, porque nenhuma senhora frequentava esses locais, sob pena de ficar "malfalada".
Já agora, uma curiosidade: Foi em volta do “Gavião Branco” que nasceram os primeiros grupos que praticaram o futebol em Campo Maior, desporto que se desenvolveu devido ao grande dinamismo de João Ruivo, funcionário público, escritor e jornalista, fundador de dois jornais: O Campomaiorense e o Notícias de Campo Maior. João Ruivo esteve ligado a todos os clubes de futebol que existiram em Campo Maior, incluindo o Sporting Clube Campomaiorense.
Os jogadores serviam-se do “gavião” como ponto de apoio e treinavam no fosso a que mais tarde se chamou “Jardim das Viúvas” que ficava mesmo em frente, no terreno onde está em construção um novo Jardim de Infância. Mas, os jogos eram disputados no terreno que fica entre a fonte/chafaris/tanque de S. Pedro e o muro da quinta do mesmo nome.
A sociedade campomaiorense era então muito estratificada. Por isso, havia os que frequentavam um ou outro dos "gaviões", consoante o grupo social a que pertenciam.
Quando surgiu o “Café Guitano”, no Terreiro, este nasceu logo estratificado em três zonas: a dos ricos, a dos remediados e a dos pobres. Claro que havia, espalhadas pela vila, um número considerável de tabernas.
Então, os “gaviões” entraram em declínio, foram fechando e acabaram por ser demolidos. O que durou mais tempo foi o “Gavião Branco” que esteve em funcionamento quase até ao final dos anos quarenta do séc. XX. Mas, nesse tempo, já não passava de uma vulgar taberna frequentada pelos contrabandistas.
Em tom enérgico, duro e autoritário – hábito que lhe ficou dos seus tempos de militar – ordena-me o director desta folheca que escreva uma crónica sobre a feira, para ser publicada neste número.
Aqui têm os leitores um caso difícil de resolver!...
A feira… A feira…
Mas valerá a pena gastar tempo e tinta em referências ou descrições da nossa feira?... Não sabemos todos nós que a feira da nossa terra o é apenas no nome? Porventura alguém ignora que a feira é apenas o pretexto para dois dias de folga aos trabalhadores e operários, pretexto para se estrear um vestido da última moda, pretexto para se estrear uma andaina à papo-seco, daquelas que torna os descendentes de Adão uns amorzinhos de elegância e de chiquismo?...
Noutros tempos – tempos que já lá vão! – sim, que era entusiasmo, animação!... A miudagem, a petizada, lá andava de bolsinha de retalhos de chita que as mães lhes faziam num bocadinho de vagar, na colheita dos cinco réizinhos, entre a parentela e amigos da família. Depois, muito contentes, dispersavam o capital amealhado na compra de uma bola, chichis, apitos, cornetas e, por último, no tradicional capilé de cavalinho, mistura de água e açúcar que, não obstante a sua cor suja e o seu aspecto nojento, bebiam sem repugnância, antes com mostras de prazer, por um canudo de lata ferrugenta, encimado por um galaroz ou cavalinho, donde lhe vinha o nome.
Era então a feira na Praça Nova[1]. Lá estava a barraca das vistas e dos fenómenos, com a sua mulher liliputiana, o seu macaco provocador, o seu órgão de manivela a buzinar-nos ouvidos com a estafada valsa do Fausto. E os choques eléctricos a provocarem jeitinhos de susto no mulherio que lá entrava. E ia-se ao circo, onde os artistas expunham as suas plásticas correctas, em trabalhos de acrobacia e de ginástica e onde aparecia sempre uma galante vedeta a deliciar-nos com a canção do Chocalhinho (nessa altura não existia ainda a canção das Rosas…) e a excitar paixões amorosas nos leões do burgo – enquanto a fanfarra, à porta da barraca, atroava os ares com uma marcha de guerra, na estridência dos cornetins e dos trombones.
E lá estava a barraca do Toma Joaquina, a anunciar à bordoada numa lata de petróleo vazia, a arrematação de qualquer lote de louça de Sacavém. E as barracas de quinquilharias e bugigangas, enlevo dos petizes. E as do ouro, tentação das camponesas. E as torrão branco de Alicante e das gemas, fabricadas pelo Barragon, pelos Valadas e pelo Salsinha, que faziam as delícias dos lambareiros. E as das rifas, onde os olhos se esgazeavam para o número premiado. E os lugares dos pucarinhos e bilhas de Estremoz e da louça do Redondo, dos artigos do Algarve, dos objectos de verga, das madeiras da Serra, das cebolas e dos alhos, da melancia de Santa Eulália a tentar o nosso apetite no vermelho da sua polpa…
Agora, os circos raro aparecem. Os poucos barraqueiros da bufarinha, sórdidos e repelentes, não fazem negócio… porque os miúdos já não usam bolsinhos de chita que, aliás, eram desnecessários para as cédulas[2] nojentas.
As madeiras, as louças, o torrão… tudo isto está hoje escassamente representado.
Dificuldades de transporte? Falta de dinheiro? Sei lá!...
O que abunda são os batoteiros ambulantes, a sugestionarem o campónio ingénuo com os dados a tilintar nos copos de alumínio.
E, sobretudo, o progresso, a civilização, está nos nossos gaviões, naquele aluvião de gaviões de artística arquitectura, em madeira de preço, que enquadram a Avenida e que a emolduram; nos gaviões pobres onde se bebe moscatel da Godinha que tresanda a azedo e nos gaviões ricos onde se bebem deliciosos sorvetes por uma palhinha e onde, de mistura, se faz a sua paradita…
Valerá a pena descrever a nossa feira, a feira da nossa terra, sem transacções de gados, sem uma parada agrícola, sem uma exposição de produtos regionais, sem festejos, sem movimento, sem vida, sem cor, reduzida a pouco mais de nada?...
Não vale, certamente. E, além disso, com 40º à sombra, é impossível tirar ideias da mioleira, nem mesmo espremendo-a como a este belo limão com que vou agora preparar uma limonada refrescativa.
Eis a razão porque, desta vez, desobedeço o camarada director recusando-me a escrever a tal crónica…
Rui de Castro
NOTA: Texto publicado no Notícias de Campo Maior de 15/8/1926, p. 2, por João Ruivo, usando o pseudónimo de Rui de Castro.
Iniciada no último quartel do século XVI, a actual Igreja da Matriz ou de Nossa Senhora da Expectação, de majestosa e robusta fábrica, crê-se ser obra do famoso mestre de pedraria do cardeal-rei D. Henrique, de nome Manuel Pires, que foi também o construtor, ou pelo menos o autor dos planos das igrejas barrocas de Évora, Estremoz e de outras terras do Alentejo, obra continuada sob a dominação filipina e que só veio a concluir-se depois da Restauração, no século XVII, tendo as primitivas cúpulas de pirâmide quadrangulares, sido substituídas pelas que ali se vêem hoje em forma de calote esférica, por aquelas terem sido destruídas pelas pedras das torres do Castelo, aquando da explosão, que as atingiram a uma distância de mais de duzentos metros, assim como as abóbadas do côro e das naves, que ruíram em parte, também.
Contíguas ao imponente templo, oferece-se à curiosidade do visitante estudioso a Capela do Calvário, de monumental altar, e uma outra toda revestida de ossos humanos do género da de Évora, se bem que menos espaçosa, é mais artística, ostentando igualmente a legenda – NÓS OSSOS QUE AQUI ESTAMOS PELOS VOSSOS ESPERAMOS, o que deve fazer meditar quem a visita.
A original e curiosa igreja barroca de S. João Baptista, bastante rica nos mármores que revestem a sua fachada e todo o interior até à cornija, é de também posterior á explosão do Castelo, portanto, do século XVIII. São estes, pois, os monumentos mais representativos que vila pode oferecer à curiosidade e à apreciação dos turistas.
Não devemos, esquecer evidentemente a famosa janela renascentista que se ostenta orgulhosamente na torre norte do Castelo, salva do desastre e que não hesitamos em atribuir ao egrégio artista normando Nicolas Chanterene, ou desenho seu e executada por seus discípulos, e da época de D. João III, século XVI, e não de D. Manuel, como a meu ver, erradamente se tem afirmado.
E não deixaremos, também, de mencionar, como digna de ser vista e admirada, uma bem trabalhada grade de ferro forjado, que se vê numa casa denominada “da Mitra”, na rua da Canada, de nítida influência espanhola, que se pode considerar um dos espécimenes mais artísticos e aprimorados do Alentejo, só tendo pares nas de Portalegre, Borba e Marvão, e da Andaluzia, em Espanha, que possuem um notável recheio em trabalhos de forja.
Quanto a pitoresco e que classificaremos um atractivo turístico, agora que Campo Maior começa a ser ponto de passagem quase obrigatório dos turistas, especialmente estrangeiros, que percorrem o país de Norte a Sul, ao longo da fronteira terrestre e marítima, queremos citar também, como digna de uma visita que não rouba muito tempo e que o bairrismo dos seus proprietários autorizará certamente, queremos citar a pitoresca e bucólica “Quinta da Rainha”, tão ligada aos nossos primeiros voos jornalísticos, de tão saudosas recordações – hoje na posse do nosso conterrâneo e amigo José Estrela da Mata e da sua dedicada esposa, a senhora Maria Rasquilha Corado da Mata que a transformaram num acolhedor e atraente ninho de Arte, e que nos deleita o espírito, naquele remansoso vale, com os seus jardins à “La Nôtre”, cascata, ruas ensombradas de buxo e engrinaldadas do roseiral e trepadeiras, lago e jogos de água, horta e pomar bem cuidado, que o vetusto solar domina com seu torreão de ameias e melões, que me levam a atribuir sua fundação ao século XVI (em que um grande número de solares ostentava sua torre ameiada em ar de fortaleza), embora suas fachadas tenham sido posteriormente modificadas e acrescentadas, a do lado Norte, com imponente escadaria de feição setecentista, e que dá majestade ao amplo pátio, ainda embelezado com graciosa fonte valorizada por uma escultura em mármore representando Neptuno com seu tridente clássico e de razoável execução.
Além disso, pode o turista admirar ali uma interessante e bem organizada colecção de Arte (tapetes, telas, peças de cerâmica, cobre, mobiliário, e outros objectos), que os seus proprietários têm vindo, desde há anos, a reunir para regalo do seu espírito, destacando-se uma original e típica colecção de almofarizes de bronze, alguns deles armoriados e que outra mais numerosa não conheço no país, nem mesmo nos inúmeros museus que me tem sido dado visitar, pois consta de mais de quarenta valiosas e artísticas peças que oferece à nossa vista curiosa.
JOÃO RUIVO
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