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Aqui se transcrevem textos, documentos e notícias que se referem à vida em Campo Maior ao longo dos tempos
Muitas destas cantigas de escarnecer tomavam a forma de cantar ao desafio. Embora o desafio fosse, quase sempre, uma forma de namorados dialogarem ou de dois homens esgrimirem a sua habilidade de cantadores.
Um exemplo contado pelos mais antigos, é o deste caso de despique entre homem e mulher, que começa com meias palavras e subentendidos e acaba com ditos e palavras bastante desbragadas:
- Estes rapazes d’agora,
Todos postos em fileira;
Parecem novilhos bravos,
Quando vão p’ra sementeira.
- Usas cabelo enrolado,
Tens corpo de bailarina;
Se eu sou novilho bravo,
Tu és a vaca torina.
- Cala-te aí piolhoso,
Segue a tua triste sorte;
Que nos pegas os piolhos,
Se o vento virar p’ra norte.
- Chamaste-me piolhoso,
Será porque já os viste;
Foste tu que mos pegaste,
Quando comigo dormiste.
Por vezes, numa simples quadra fazia-se a mais certeira e cruel das caricaturas. Estas que se seguem, tudo indica poderem remontar ao século XIX, pois, algumas delas, ridicularizam figuras muito populares em Campo Maior naquele tempo:
Uma velha muito velha,
Mais velha que o Catapum,
Punha-se a catar cagáteas,
Na regadeira do cú.
Todos falam no Conrau,
E é caso p’ra se falar,
Deixou a enxada em casa,
Sabendo que ia cavar. [1]
A mulher do Ti’Borlinhas,[2]
Esteve todo o dia ao sol;
Apanhando caganitas,
Julgando qu’era cerol.
Chamaste-me coça o cu,
À porta da rapariga;
Fiquei sendo o coça o cu,
P’ro resto da minha vida.
Chamaste-me pouca roupa,
Tu tens muita, é teu proveito;
Menos tenho que despir,
À noite quando me deito.
Pus-me a cagar de joelhos,
P’ra não sujar o capote;
Escorreguei, caí de caras,
Fiquei c’um grande bigote.
Mas que lindos olhos tem,
Aquela “filha da puta”;
Os peitos são melancias,
Tudo o resto é boa fruta.[3]
Alto lá, tenha lá mão,
Que ninguém o escandaliza;
Toda a sua geração,
Alça a perna quando mija.
Relevemos a crueza da linguagem utilizada em algumas destas composições, procurando compreender que estas situações se inseriam num tempo em que, a maioria dos portugueses, viviam ainda em pequenas comunidades, muito isoladas e, por isso, quase auto-suficientes, sendo a sua população, na quase totalidade, constituída por gente de pouca ilustração, que trabalhava a terra e dela tirava o seu sustento. Nessa época a educação escolar era privilégio de uma escassa minoria.
Por outro lado, nesses povoados essencialmente rurais fossem eles cidades, vilas ou aldeias, quase todos se conheciam. Entre eles o grau de intimidade e de liberdade de expressão poderia ser muito grande, permitindo abusos de linguagem inadmissíveis noutros estratos sociais.
A sociedade estava compartimentada de forma de tal modo estanque que, entre os diversos estratos quase não havia comunicação. As elites locais, mais endinheiradas e mais instruídas, muito reduzidas em número, viviam completamente à margem do povo, ignorando e desprezando qualquer manifestação da sua cultura e das suas tradições. Isso fica bem documentado quando procuramos recolher informações em documentos escritos: as informações são escassas nos livros e nos jornais. A cultura escrita era feita pelos senhores, sobre os senhores e para os senhores.
O povo, que não sabia ler, produzia uma cultura basicamente oral. Daí que, para a estudarmos, temos que recorrer a testemunhos orais, os únicos vestígios que restam da antiga cultura popular. São raras as obras escritas que se dedicaram ao seu estudo e preservação, embora algumas delas sejam verdadeiramente geniais, como as obras de carácter etnográfico, sobretudo os cancioneiros populares, de José Leite de Vasconcelos (1858-1941) e, a nível mais regional, a monumental recolha e compilação feita pelo elvense António Thomaz Pires (1850-1913), que chegou a publicar mais de 10 mil quadras populares. No jornal A Sentinella da Fronteira que existiu em Elvas entre 1881 e 1891, publicou cerca de um milhar de quadras recolhidas no Alto Alentejo. Essa publicação aparecia titulada como – Poesia Popular Portugueza – Cantos Populares do Alemtejo – Recolhidos da tradição oral por António Thomaz Pires.
[1] Esta cantiga é da autoria do poeta popular campomaiorense Joaquim António Mota, que viveu no século XIX, cuja biografia feita por João Pessoa foi publicada em 1957 no jornal eborense Democracia do Sul, sob o titulo “Campo Maior – Galeria de Figuras nº XXII”.
[2] O Ti’Borlinhas tinha um comércio e uma oficina de sapateiro aos Cantos de Baixo na duas primeiras portas da “rua das Pereiras”, no prédio que fazia esquina com a “rua de Ramires”.
[3] Numa carta de Aníbal Fernandes Tomás para António Tomás Pires, datada de Lisboa, 15 de Novembro de 1906, está transcrita uma quadra muito semelhante:
Ó que lindos olhos tendes,
Olhem a filha da puta;
Com melancias no peito,
Dizendo: Quem compra fruta?
Intitulo este caso que me foi contado por um homem de avançada idade e que se torna interessante pela graça da situação e pela maneira como retrata a vida na vila de Campo Maior, há cerca de meio século atrás, como – “ O Barbudo, o Pelado e o Pego sem Fundo”:
Em tempos idos, talvez na década de quarenta, num dia de Verão, três raparigas, jovens adolescentes, foram lavar a roupa da semana ao rio Caia, como era uso na época.
Finda a tarefa que ali as levara, aproveitaram para também tomarem um banho e mudarem de roupa. Enquanto o faziam, e numa brincadeira própria da sua idade, julgando não haver por perto ninguém que as pudesse observar, começaram a fazer comparações entre as suas partes pudibundas, apelidando-as em termos mais ou menos jocosos:
- Olha a minha! Que farta cabeleira! Parece o Barbudo! Dizia uma.
- A minha é o Pelado! Disse a outra, constatando a escassez de adereços pilosos.
- Pois a minha parece um Pego sem Fundo, disse a terceira, dando com isso sinais de secretos desejos.
Entretanto, um rapaz que por ali mourejava tinha-se aproximado escondidamente e, ocultado numa moita de arbustos, seguia gulosamente toda aquela ingénua e divertida situação.
As raparigas regressaram a suas casas convencidas de que ninguém as teria visto e ouvido. O rapaz não falou do caso a ninguém.
Algum tempo depois, num domingo, como era da tradição um grupo de rapazes e raparigas juntaram-se e organizaram um bailarico na rua, cantando e dançando as tradicionais “saias”. No grupo estavam as três raparigas e o rapaz que as observara na dita cena do rio. Em dado momento, o indiscreto observador do virginal banho, dando largas à sua veia poética, cantou a seguinte quadra:
Deus me livre do Pelado,
Deus m’acuda com o Barbudo,
Se me chegar a afogar,
Seja no Pego sem Fundo.
As raparigas logo entenderam o recado e perceberam o que se tinha passado. Prontamente, a mais expedita respondeu:
É verdade, sim senhor,
Tudo isso aconteceu;
Esteve ao pé de três almoços
E nenhum deles comeu.”
A história é contada como verdadeira e não custa aceitar que o fosse, pois assim era a capacidade de improvisão poética e do repentismo dos campomaiorenses quando se tratava de cantar as “saias”.
Nas cantigas de escarnecer caía-se por vezes na desmedida, quando se passava para o lado da ofensa e da ordinarice. Embora bastante raras, algumas das quadras deste tipo geravam grandes ressentimentos e confrontações que acabavam em violentos conflitos chegando a vias de facto, com agressões físicas, quase sempre envolvendo grupos pois, como em todos os tempos, os jovens tendiam a associar-se em bandos ou maltas de camaradagem. Como seria de esperar, neste tipo de cantigas, a linguagem tornava-se, por vezes, desbragada. Mas, se quisermos usar de alguma complacência, teremos que reconhecer que, afinal, a linguagem que utilizavam não era nem menos nem mais escabrosa do que a que foi utilizada por grandes vultos da literatura portuguesa como, por exemplo, Gil Vicente ou Bocage, para citar apenas dois dos mais conhecidos.
Muitas destas cantigas tomavam a forma de cantar ao desafio. Embora o desafio fosse, quase sempre, uma forma de namorados dialogarem ou de dois homens esgrimirem a sua habilidade de cantadores, nem sempre o desafio era bem comportado e decorria de forma tão idílica. Por vezes transformava-se numa disputa com cantigas de escarnecer. Alguns reptos e respostas tinham apenas como intenção provocar o riso. Mas, noutras vezes, as coisas iam mais adiante dando origem a situações intoleráveis. O vinho que escorria em demasia pelas gargantas, o ressentimento, o despeito e a rivalidade, motivavam intervenções que, atravessando a fronteira dos bons modos e do bom gosto, se tornavam actos de ofensas pessoais e se traduziam em atitudes de grande grosseria. Não terão sido poucos os desafios que resultaram em enormes confusões porque o descante descambava para violentas cantigas de escárnio e maldizer.
Vejamos este exemplo que remonta aos finais do século XIX e em que, na Feira de São Mateus, um homem se chega ao baile e canta para a roda:
Sete anos fui casado,
Sete mulheres conheci;
Graças a Deus para sempre,
Estou virgem como nasci.
A pronta resposta de uma rapariga embasbacou o ingénuo cantador, rematando desde logo o desafio:
Ao Senhor da Piedade,
Estou bradando por justiça;
Porque, ou você não é homem,
Ou então não tem nabiça.
Esta situação documenta como algumas destas situações davam azo a respostas repentistas que correriam de terra em terra como divertidas anedotas.
Nesta outra, que é muito conhecida, um grupo de jovens terá chegado a uma festa numa aldeia vizinha e tomado generosamente uns copos de bebida. Chegados ao baile, um deles alçou a voz e lançou:
Um copinho, dois copinhos,
Três copinhos d’aguardente;
As mocinhas desta aldeia,
Fazem um homem bem quente.
Respostas imediata de um da terra:
Um copinho, dois copinhos,
Três copinhos de licor;
Levas um murro nos cornos,
Passa-te logo o calor.
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