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Aqui se transcrevem textos, documentos e notícias que se referem à vida em Campo Maior ao longo dos tempos
As quadras que expressam sentimentos de amor ou de qualquer outra forma de bem-querer, são as que melhor têm resistido ao passar do tempo. Com algum espanto, encontramos, em testemunhos muito antigos, quadras cujo tema é o amor e que ainda hoje são cantadas, mantendo toda a sua actualidade. Trata-se do tema do cantar as “saias” que mais foi cultivado ao longo de todos os tempos, porque, efectivamente, esta expressão de cultura popular, tem como objectivo maior a expressão de sentimentos através dum canto que propiciava o encontro e a comunicação entre os apaixonados. Podem variar os objectos e o tipo de sentimento: entre um homem e uma mulher; pela terra que é a nossa; por um parente muito querido. Mas, fundamentalmente, o “cantar as saias” tem servido sempre para expressar afectos e sentimentos de bem-querer.
Menina por ser bonita,
Não cuide que mais merece;
Quanto mais linda é a rosa,
Mais depressa desvanece.[1]
Já não há estrelas no céu,
Senão uma ao pé da lua;
Tenho corrido e não acho,
Cara linda como a tua.[2]
Se tu me quisesses bem,
Do fundo do coração,
Já me vieras falar,
Que as noites bem grandes são.[3]
Hei-de amar-te que é meu gosto,
Suceda o que suceder;
Mesmo tendo uma só vida,
Por ti a quero perder.[4]
[1] Publicada em Cantos Populares Portugueses – Recolhidos da tradição oral, por A.T.Pires. Elvas (1902-1910). p. 141.
[2] Publicada em A Sentinella da Fronteira, nº 129, Elvas, 25 de Junho de 1882.
[3] Idem, nº 321, Elvas, 17 de Junho de 1883, com pequenas diferenças.
[4] Idem, nº 129, Elvas, 25 de Junho de 1882, com pequenas diferenças.
No que respeita à melodia, as “saias” sofreram ao longo do tempo alterações pouco significativas. Embora houvesse a preocupação de criar regularmente as chamadas modas novas, a música manteve-se estruturalmente muito semelhante.
Segundo testemunhos antigos, o descante e a música das “saias” consistiam numa toada dolente, de ritmo lento e repetitivo. Modernamente, por influência dos mass-media, que vão transformando o que era cantar e dançar de rua, em música gravada para ouvir e cantada em actuação de palco, o ritmo tem sido acelerado, adquirindo uma maior vivacidade. Também se está a verificar a tendência para associar às saias outros instrumentos, agora muito em uso, principalmente as pianolas electrónicas e as violas.
Foi possível encontrar em livros publicados sobre este tema, ou que fazem referência às “saias” como forma de música popular para acompanhar a dança, registos em escrita musical que permitem fundamentar juízos sobre a sua evolução e estabelecer comparações com as suas características na actualidade. Por outro lado, com a ajuda amável de entendidos em música, conseguiu-se a elaboração de pautas musicais a partir de gravações de cantadores que, nos tempos actuais, se dedicam ao “cantar as saias”.
Desde o início dos anos cinquenta do século passado ocorreram grandes transformações, a partir da grande diáspora sofrida pelas populações dos centros rurais. A comunidade campomaiorense que, há cerca de cinquenta anos, ainda era essencialmente uma comunidade que vivia predominantemente da agricultura na qual se ocupava quase toda a sua população, tem hoje apenas uma escassa minoria dos seus habitantes ligada aos trabalhos agrícolas. Até ao fim da Segunda Grande Guerra, a maior parte dos campomaiorenses nascia, vivia e morria na sua terra. Hoje estão, em grande número, espalhados pelo vasto mundo.
Assim sendo, é muito natural que tenha surgido uma produção de quadras repassadas de saudade que têm como tema as belezas e as virtudes, reais ou imaginadas, da terra lembrada pelos que estavam longe, ou expressando a saudade dos que na terra ficavam:
Vila de Campo Maior,
Ela lá e eu aqui,
Quem me dera estar agora,
Na terra onde eu nasci.
Em cada canto um amigo,
Em cada rua uma esperança;
Em cada passo que sigo,
Um sorriso de criança.
Campo Maior terra linda,
Campo Maior terra bela,
Há muita gente em Lisboa,
Que chora d’amores por ela.
De Lisboa me mandaram,
Eu p’ra Lisboa mandei;
Um ramo de violetas,
Que no meu peito guardei.
Para Lisboa mandei,
Quatro peras num raminho;
Como era fruta nova,
Comeram-nas p’lo caminho.
Ó Lisboa, ó Lisboa,
Eu também p’ra lá quero ir;
Tenho lá uma pessoa,
Que é quem me tira o dormir.
Coitadinho de quem sai,
P’ra fora do seu país;
Em chegando a terra alheia,
Se é mestre fica aprendiz.
Alguns dos temas do “cantar as saias”, estão hoje nitidamente em desuso, sobrevivendo apenas na memória dos mais idosos. Em contrapartida, novas temáticas se foram tornando dominantes. Isso tem a ver com a evolução por que tem passado globalmente a sociedade, ou com fenómenos de mudança que afectaram, em particular, a comunidade campomaiorense.
É natural que assim tenha acontecido pois, por exemplo, dificilmente as quadras que antigamente faziam referência a tarefas do trabalho nos campos poderiam sobreviver num tempo em que apenas uma escassa minoria da população local se dedica ao trabalho agrícola e em que muitas das antigas tarefas desapareceram, devido a novas tecnologias que mudaram completamente as práticas da agricultura. Duvido que termos como alqueivar, sachar ou escardar signifiquem hoje alguma coisa para a maioria dos jovens campomaiorenses.
Algumas das quadras compostas de improviso em cantares de desafio, notáveis pela sua beleza ou pela maneira como retratam determinados sentimentos ou situações, são as de mais antiga composição. Algumas dessas quadras são ainda hoje cantadas. Pela mesma razão, é também muito natural que as cantigas de enamoramento, que ainda estão muito presentes no actual “cantar de saias”, incluam um número considerável de quadras muito antigas pois elas falam dos amores e dos encantos que os amadores encontram nos seus amados, temas eternos de toda a poesia.
Contudo, essa temática tem vindo a perder importância, na medida em que essas formas de descante deixaram de ter a função social de servirem de meio de comunicação nos namoros proibidos, reprimidos ou forçados a grande distanciação que, noutros tempos, caracterizava as formas de namorar à porta ou à janela, sempre sob a apertada vigilância das mães e a fingida interdição dos pais.
Hoje, com a liberalização das relações entre os jovens de ambos os sexos, a quadra deixou de ter a função de recado, funcionando apenas como manifestação de bairrismo, ou como simples pretexto de diversão. Apesar disso, talvez porque a capacidade criativa dos autores aumente com o seu grau de instrução, aparecem hoje novas quadras de amor de grande perfeição formal e de grande inspiração poética.
No Alentejo, os cantos destacaram-se sempre como notáveis manifestações da cultura popular: no Baixo Alentejo os cantos corais; na maior parte do Alto Alentejo, eram cantadas e bailadas as “saias”.
É um facto que, como escreveu Maria Arminda Zaluar Nunes, “ a cada passo, no desenrolar da nossa literatura, interpenetram-se o lirismo culto e o popular”. Com relativa frequência aparecem como quadras de “saias”, algumas que podemos identificar pelo autor. Ainda com mais frequência, se nos coloca a questão de entre as quadras de autores, mesmo de autores notáveis, e as quadras populares, não ser fácil decidir sobre quais apresentam maior perfeição formal e maior riqueza de conceitos.
É uma realidade incontestável que as quadras do “cantar as saias” se foram tornando mais letradas, aproximando-se, na forma e na linguagem, da literatura escrita. O facto de isto acontecer não deve ser tomado como uma prova de que se estão a tornar menos populares, mas porque o povo é uma realidade dinâmica que está em constante transformação. Daí resulta que a cultura que ele produz e que ele preserva, se vai mudando na medida em que mudam as condições e os protagonistas que integram o povo produtor dessa mesma cultura.
A cultura popular, enquanto viva, é sujeito activo duma história. Só quando morre se torna objecto estático duma análise meramente histórica. Nesta perspectiva, não deve ser motivo de reparo e de estranheza que, nas manifestações de cultura popular que mantêm alguma actualidade, se note uma evolução, quer formal, quer de conteúdo, nas composições que são feitas ou usadas no presente. Isso não significa degenerescência ou adulteração. Significa apenas que essas manifestações culturais estão vivas e a vida implica mudança.
A elevação do nível social, económico e cultural da população é uma consequência da democratização que implica acesso generalizado a níveis de escolarização cada vez mais elevados. Os grandes meios de comunicação contribuem também para quebrar o isolamento, disseminando a informação e o conhecimento. Só de uma perspectiva elitista poderemos desejar que o povo mantenha sem mudança as suas manifestações culturais. Porque isso não significaria uma maior “pureza” ou autenticidade. Significaria, pelo contrário, atraso e estagnação no seu desenvolvimento, com as consequências inevitáveis para as suas condições de vida. Os pobrezinhos simples e ignorantes só são felizes na lógica dos que não são sentem nas suas vidas os efeitos amargos que toda a pobreza implica.
As “saias”, como forma de cultura popular, expressavam o pensar e o sentir de comunidades que, ainda não há muito tempo, viviam em íntimo contacto com a natureza.
Até há cerca de meio século, a população do Alentejo, na sua grande maioria ligada aos trabalhos agrícolas, vivia em comunidades muito isoladas e muito autónomas. As dificuldades dos transportes, a ausência de estradas capazes e de outros meios de comunicação, o povoamento escasso e muito concentrado, constituíam factores que geravam o grande isolamento das povoações. Nestas condições, as tradições mantinham-se e propiciavam o desenvolvimento de formas próprias de comportamento colectivo. No “cantar as saias”, com as suas ironias, os seus sarcasmos e as suas sentenças singelas, podemos encontrar a expressão da moralidade, da mundividência, das concepções religiosas, dos sentimentos de mágoa e de revolta ou dos afectos da gente simples que vivia nesses universos quase fechados que eram as cidades, vilas e aldeias alentejanas até à primeira metade do século XX.
As “saias” foram uma expressão cultural colectivamente criada e perpetuada por comunidades rurais. O acentuado carácter de produção colectiva não excluía, contudo, que as cantadeiras e os cantadores mais afamados, construíssem e conservassem o seu próprio repertório, ao qual iam acrescentando novas quadras criadas pelo engenho da sua inspiração.
O gosto popular foi esquecendo as menos apreciadas, ou porque eram vulgares, ou porque não eram perfeitas na sua construção. As outras, as que caíam fundo no gosto colectivo, eram repetidas até à exaustão e, assim, foram conservadas ao longo do tempo, passando de geração em geração. Ainda hoje, em Campo Maior, ouvimos cantar – nas arruadas dos grupos que se formam de modo mais ou menos espontâneo e nos bailes de roda que ocupam os cruzamentos de ruas – quadras que, com alguma surpresa, podemos encontrar em documentos escritos há mais de cem anos. Essas quadras constituem autênticas relíquias desta velha tradição. Muitas delas conservaram-se sem modificação da sua forma original. Outras foram sendo adaptadas às novas condições que se foram gerando na sociedade local.
Há quadras que se conservaram na mesma família atravessando sucessivas gerações de cantadores. Mas a inovação é constante como é próprio das manifestações de cultura popular que se mantêm vivas. E as “saias” são, em Campo Maior, tradição e vivência actual, ainda muito presente na vida desta comunidade alentejana.
Em Campo Maior poucos serão os que as conseguem cantar de forma notável. Mas, praticamente todos os campomaiorenses são capazes de as trautear. Elas fazem parte da sua cultura, pois cresceram a ouvi-las e, de forma natural, foram-nas memorizando. A maioria dos campomaiorenses sabe de cor, pelo menos algumas das quadras mais frequentemente cantadas. Aliás, esta situação foi bem retratada pelo inspirado canto de anónimos cantadores campomaiorenses, há mais de cem anos:
Isto do cantar é veia,
Que Deus deu às criaturas;
Quem não sabe tatareia, [1]
Com’os cegos às escuras.[2]
Todos aqui fazem versos,
Todos aqui são artistas;
Todos aqui cantam saias,
Todos aqui são bairristas.
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