Passaram cerca de 140 anos sobre os graves acontecimentos que, durante meses tinham trazido angustiados e revoltados os habitantes de Campo Maior. O governo que, por essa altura, estava constituído em Portugal, decidira efectivar uma reforma administrativa que consistia essencialmente numa acção centralizadora que levava à criação de grandes concelhos e de que resultava o desaparecimento de antigos concelhos como Campo Maior.
Esta decisão provocou grande revolta entre os campomaiorenses que iam perder a sua autonomia municipal, tornando-se apenas numa paróquia civil, ou seja, numa espécie de aldeia de um novo concelho que teria como cabeça a cidade de Elvas.
Não se tratava apenas de uma questão de prestígio, embora isso, só por si, fosse de considerável importância. Tratava-se sobretudo de perder privilégios que eram de grande relevância para os campomaiorenses. Os serviços que, até aí, estavam sedeados na vila, iriam passar para a cidade de Elvas. Isto numa época de tanta dificuldade de transportes por causa das más estradas e das grandes distâncias que só podiam ser vencidas em longas, incómodas e demoradas caminhadas a pé, no dorso dos animais, ou em ronceiras carroças.
Além disso outras questões pesavam nas preocupações dos campomaiorenses. Campo Maior era, nessa altura, uma terra bem administrada. Havia décadas que a câmara estava entregue a um conjunto de homens, de que se destacava o comendador Barata, que muito bem cuidavam da vila sendo muito elogiadas as obras de beneficiação que tinham sido levadas a efeito. Em compensação Elvas, pelo contrário, tinha a fama de estar entregue a péssimos administradores. Daí advinha, entre outras consequências, que existisse uma grande diferença entre os impostos camarários que eram cobrados em Elvas e os que eram cobrados em Campo Maior.
Acima de tudo havia o sentimento de revolta por verem assim menorizada uma terra de tanto prestígio, tão próspera e de tão notável quanto era Campo Maior. Até porque, naquele tempo, as diferenças entre Elvas e Campo Maior não seriam muito acentuadas.
Mas, no final do ano de1867, a situação começou a mudar. O governo lançou um novo imposto sobre o consumo. A situação já era tão crítica que esta foi a gota que fez transbordar. Os comerciantes de Lisboa, Porto e Braga revoltaram-se. No Porto houve conflitos de grande gravidade. Esta revolta, que ficaria conhecida como a Janeirinha, provocou a queda do governo que apresentou a sua demissão ao rei no dia 31 de Dezembro.
Os jornais noticiaram: “Caiu o ministério Fontes-Ferrão. Propagou-se por todo o país tão fausta notícia com a rapidez da electricidade e, não tem tido limites a alegria do povo. Lição eloquente para orgulhosos.”
Perante uma oposição tão generalizada, era preciso arrepiar caminho para repor a ordem e o equilíbrio político. O novo governo teve de anular as decisões que haviam sido tomadas e que provocavam a revolta das populações. Entre essas medidas, a que mais afectava os campomaiorenses, era a reforma administrativa que determinava a extinção do concelho de Campo Maior. E a notícia tão desejada acabou por chegar.
Para dar uma ideia da alegria com que foi recebida na vila a notícia de que tinha sido anulada esta nefasta decisão, transcrevo o que, a propósito foi publicado no nº 63 de 23 de Janeiro de 1868 do jornal de Elvas Democracia Pacífica:
"Campo Maior, 19 de Janeiro
Foi aqui imensamente festejada a dissolução parlamentar: repiques (dos sinos), toques de música, foguetes, vivas e iluminação, tudo enfim superabundou.
Na quinta-feira, 16 pelas 2 horas do dia, o ex-governador civil do distrito de Portalegre telegrafou ao ex-administrador deste concelho para que reassumisse o cargo. Pouco depois o oficial de diligências com o pregoeiro fazia pública a extinção e suspensão das leis que causaram distúrbios no reino. À noite as duas filarmónicas unidas foram tocar pelas ruas e à porta do dito administrador, havendo foguetes e os costumados vivas.
Na sexta-feira, 17, o regozijo pela chegada da comissão que foi a Lisboa representar a el-rei contra a supressão do concelho, era tal que parecia um povo de loucos. A toda a hora se ouvia o rodar de caleches, de seges, char-à-bancs e de carros que conduziam gente para a estação de Elvas a esperarem a comissão campomaiorense que devia chegar pelas 7 ½ horas da noite como efectivamente chegou. Parecia que se despovoava Campo Maior.
Quando eram 7 horas da noite, mais de 2.000 pessoas enchiam a rua do Ramires, Cantos de Baixo e rua Direita, onde está a casa da sociedade artística, que tinha erguido um grandioso arco triunfal (trabalho do Sr. João Leitão e dos seus oficiais e amigos) tendo em cima um coreto para as duas filarmónicas que, reunidas, são uns quarenta músicos.
Às 7 ½ da noite soube-se que a comissão partia da estação de Elvas para Campo Maior, acompanhada de uma parte do povo, que a tinha ido esperar e que vinha com archotes pela estrada, cuja extensão é de 3 léguas.
Próximo das 8 horas da noite saiu a filarmónica, dirigindo-se a casa do fiscal da câmara, o qual saiu com a bandeira da mesma e acompanhado pelos mais vereadores (menos o Sr. presidente que, por ser membro da comissão vinha com ela), foi colocar-se na frente da música. Aos gritos do povo: - Viva a câmara! Viva o concelho! Viva el-rei! – marcharam todos, seguidos cada vez de mais povo, pelas ruas da Canadinha, Canada, Mouraria de Cima, Mouraria de Baixo, S, João de Deus, S. João Baptista, Terreiro da Estalagem, Paço Misericórdia e Direita, parando à porta da dita sociedade.
Aqui o povo, que nunca cessou de dar vivas, gritou: Ao campo! E lá marchou a câmara, a música e umas 3.000 pessoas, para a Porta de Santa Maria (vulgo Porta da Vila) e daqui pela estrada real até às proximidades da ermida de S. João Baptista, extramuros e a dois 2 Km da povoação.
Não sei descrever quanto presenciei: infinitas luzes de archotes por toda a estrada e montes próximos, as negras nuvens de povo, música, fogueiras nas hortas, foguetes ao ar em todas as direcções correspondendo aos que se ouviam lançados pelo povo que acompanhava a comissão e que já vinha a 3 Km de distância.
Ao chegar a comissão próximo dos elementos da câmara, aquela se apeou e sua caleches, tocando a música um hino dedicado à comissão, composto pela Sr.ª D. Emília Rangel Mattoso dos Santos Rosado, filha do comendador e doutor em medicina, António Maria Rodrigues dos Santos, membro da comissão.
Cessou a música e a câmara entregou o estandarte ao seu presidente, havendo grande ovação e vivas.
O Sr. presidente da câmara e comendador Cristóvão Cardoso d’Albuquerque Barata, com o estandarte da câmara, caminhava á frente da música seguida do povo e na retaguarda as caleches, as seges, etc.
Seriam 11 horas da noite, entrava tudo na vila, dirigindo-se para a Praça Nova pelas ruas Direita, do Ramires e de S. Pedro. Chegados à praça, cessou a música. A câmara, a comissão e muitos cavalheiros subiram as escadas dos paços do concelho e do segundo pátio. O Sr. presidente agradeceu ao povo a honra de o terem nomeado membro da comissão. Seguiu-se o Sr. Dr. Santos que também agradeceu a mesma honra, dando conta ao povo do bom resultado da missão. Seguiu-se o Sr. João Dubraz que, com os seus costumados discursos enérgicos, relatou como se deu princípio, no Grémio, na rua da Canada, aos acontecimentos que Campo Maior tem presenciado, elogiando a comissão que foi a Lisboa e os indivíduos desta vila, residentes na capital, que se associaram a ela, concluindo o discurso em propor ao povo e à câmara, para comemorar os acontecimentos de Campo Maior o seguinte: que a rua da Canada, d’ora avante seja chamada Rua 13 de Dezembro; a rua da Canadinha, seja Rua do Conde d’Ávila; a Praça Nova, seja agora Praça de D. Luís I; o Largo da Carreira, fique sendo o Largo dos Carvajais; a rua do Tenente General, tenha o nome de Rua do Visconde de Seabra; a rua da Cadeia, se denomine para o futuro Calçada do Castelo; ao Terreiro da Estalagem, se dê o nome de hoje em diante de Largo do Barata; e ao Terreiro da Misericórdia, se chame desde já Largo do Barão de Barcelinhos. Tudo foi muito aplaudido pelo povo e pela câmara. (…)
Começou então todo o povo a sair da praça e a música foi para o coreto da sociedade artística (na Rua Direita), a tocar escolhidas peças, bem como nas duas seguintes noites, havendo espontânea iluminação pública. Esquecia-me de dizer que, na segunda noite, foi a filarmónica tocar à porta de todos os cavalheiros da comissão, em sinal de reconhecimento pelos serviços que prestaram.
Permita-se-me dizer que a comissão foi muito obsequia da por muita gente de Lisboa , especialmente pelo Ex.mo Conde d’Ávila, que a recebeu na respectiva sala do ministério do reino; e que, dando a palavra ao Sr. Dr. Santos, o ouviu por espaço de quase uma hora, de pé e com toda a atenção, respondendo que se demorassem uns dias e iriam satisfeitos para suas casas. Sua Ex.ª, despediu-se da comissão apertando a mão a todos.
Nos teatros e em toda a parte se falava da comissão de Campo Maior".
(Assinado: Um professor)