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CAMPO MAIOR – A CATÁSTROFE DE 1732

Por Frei Manuel de Figueiredo:

 Eremita Augustiniano, cronista da sua província (Ordem), e muito acreditado pregador no seu tempo, de seu nome António Dias da Silva e Figueiredo, foi natural de Campo Maior e morreu no Convento da Graça de Lisboa a 19 de Novembro de 1774.

Estêvão da Gama de Moura e Azevedo, na sua obra "DESTRUIÇÃO DA VILA DE CAMPO MAIOR", pág. 140, "entre os feridos de mais nome (..) o Padre Frey Manoel de Figueyredo, religioso de Santo Agostinho e Prior que foi no seu Convento da Graça, em Lisboa.

Estava de visita à sua família, em Campo Maior, quando se deu a explosão do paiol na torre de menagem, provocando uma terrível destruição em Campo Maior. Testemunhou, portanto, por vivência directa,  o trágico acontecimento que descreveu neste documento por si publicado em Lisboa, com o seguinte título:

“Notícia do lastimoso estrago, que na madrugada do dia 16 de Settembro, deste presente anno de 1732, padeceu a Villa de Campo-Maior, causado pelo incêndio, com que hum raio, cahindo no armazém da pólvora, arruinou as torres do castello, e com ellas as casas da Villa. Escrita por António Dias da Sylva, e Figueiredo, natural da mesma Villa”, Lisboa Oriental, na Officina Augustiniana, 1732

Encontrei este documento, por mero acaso, na Biblioteca Nacional de Portugal, em Lisboa, numa das minhas pesquizas de documentos que contivessem informações sobre personagens e factos da história  de Campo Maior. Nunca tinha visto qualquer referência que lhe tivesse sido feita. Mas, no meu entender, por ser um testemunho presenciado directamento por quem a ele assistiu ao vivo, constitui, com o de Estêvão da Gama de Moura e Azevedo, outro testemunho directo, uma descrição muito realista e absolutamente credível desta terrível tragédia.

Creio que este texto foi pela primeira vez, por mim publicado in, "Alem Caia", em 18 de Outubro de 2016.

Vejamos como o nosso conterrâneo Frei Manuel de Figueiredo descreveu os factos a que assistiu, actualizando a escrita e introduzindo algumas notas para facilitar a sua compreensão.

Como orador afamado e escritor experimentado que era, a sua descrição é impressiva, muito viva e muito pormenorizada. O texto, ainda que algo extenso, é um documento de tal valor que não deve ser ignorado por quem se interessar por estes acontecimentos.

 

"Desde o dia 14 de Setembro começou o céu a dispor-se para este estrago, encapotando-se na primeira noite os ares e fuzilando com alguns relâmpagos os quais, acompanhados de trovões, causaram muitos sustos, mas que não passaram de ameaços.

 Chegou enfim a tristíssima noite de dia 15 que havia de reduzir a cinzas aquela máquina (refere-se ao castelo) que, por quase cinco séculos, resistiu às injúrias do tempo e aos combates da guerra. Principiou com a carranca dos ares a atemorizar os corações, anunciando-lhes com alguns trovões a ruína em que, daí a poucas horas, se haviam de encontrar sepultados.

Seriam as 3 horas da madrugada quando, cruzando-se duas trovoadas, uma da parte do Poente, outra da parte do Meio-Dia, fizeram despertar com horríveis trovões os moradores. Quase uma hora durou o horror da tormenta em que as duas trovoadas pareciam travar um combate disputando qual delas devia assolar a vila. Até que, unindo as suas forças num horrível estampido, saiu de uma nuvem o fogo que tinha sido concebido por tamanha ira. Caiu o raio na torre maior, ignorando-se de que parte a feriu. Uniu-se o fogo vindo do céu ao da terra quando rebentaram as bombas, granadas e pólvora que se guardava no interior da torre. Havia nela 5.732 arrobas e 6 arráteis de pólvora, 4.816 granadas ordinárias, 830 granadas reais, 711 bombas, 2.575 granadas desatacadas. Tudo isto com o seu impulso deu ruína ao castelo e sepultura à vila.

Ateando-se o fogo do raio, em tanta, tão arrumada e tão activa matéria, arrancou dos alicerces a torre de menagem e com ela mais quatro das seis torres pequenas. A este estrago seguiu-se o da vila: primeiro pelo impulso violento da explosão; depois pelo chuveiro de pedras, algumas de notável grandeza, despedidas do castelo arruinado.

Com o repentino abalo e ruína de suas casas, os assustados moradores que ficaram vivos pensaram, cada um deles, que era apenas o seu estrago particular, ou seja, o que um raio tinha feito na sua própria casa. Até que clamando uns por misericórdia, outros por confissão e outros por socorro, entenderam que se não podiam valer uns aos outros porque a ruína era de todos. Mas, no princípio, no meio da confusão e do horror, ignoravam qual tivesse sido verdadeiramente a causa.

O impulso foi tão violento que as casas caíram ao mesmo tempo parecendo que disputavam umas às outras o terreno para se derrubarem. Ficaram arruinadas 840 casas e mesmo as poucas que resistiram ao estrago, tiveram seu dano em telhados e portas. Foi tal o impulso que, mesmo as portas que não estavam voltadas para o castelo, foram violentamente arrancadas das suas ombreiras. Serviu de escudo ao pequeno número das casas que ficaram de pé o grande edifício da Igreja Matriz que susteve a maior parte do chuveiro de pedras da torre. Mas o magnífico templo que susteve o maior ímpeto do castelo, sofreu algum destroço, destruindo-se todo o frontispício e a abóbada do coro que estava sobre a porta principal e que era obra de pedraria e muito forte. Também ficaram danificadas as abóbadas das suas três naves e algumas das colunas que são de cantaria. Quebraram-se as portas, tendo as principais sido arrancadas com tal violência que foram parar junto ao altar-mor. Nem as imagens ficaram incólumes de tamanho ímpeto.

O mais sensível estrago foi o que padeceu a Igreja, Convento e Hospital de S. João de Deus, onde não ficou casa alguma que não padecesse ruína. Mas o mais lamentável foi o que ofendeu o mais sagrado. Porque, caindo o tecto da Igreja e quebrando o Sacrário onde estava o Santíssimo, se achou a Ambula 1] fora do seu lugar e as formas consagradas caídas em terra e despedaçadas, ainda que juntas debaixo da hóstia grande que ficou inteira.

A Misericórdia e Hospital desta vila também tiveram o seu dano. (Referência ás antigas instalações que ficavam na rua e largo do mesmo nome).

Maior dano experimentou o Convento de São Francisco, onde não ficou porta inteira, nem mesmo a mais interior, abrindo grandes roturas nas suas abobadas as muitas e grandes pedras que sobre elas caíram. Arruinou-se também o frontispício da sua Igreja, obra recém acabada, caindo em terra a imagem de Santo António que estava nesse frontispício, tendo caído os pedaços na cabeça de um pobre homem que procurava refúgio no espaço sagrado da Igreja, provocando-lhe a morte.

Como a veneranda imagem do grande Baptista estava depositada na pública capela, que tem nas suas casas o governador desta praça, por estar demolida a Igreja do Santo, devido ao projecto de se edificar uma nova, maior e de melhor arquitectura, foi aquela capela a única que foi respeitada pela ira do céu, pois que, caindo grandes pedras nas casas do governador, com grande dano, nem de leve elas ofenderam o lugar onde estava o Santo, ficando ilesa toda aquela numerosa família do governador. Benefício que também experimentaram todos os irmãos que, no presente ano, servem na mesa do Santo.

Confessamos que também a Ermida do invicto Mártir S. Sebastião, que está num baluarte da muralha, não sofreu ruína, mas não é tão notável o prodígio, por ficar numa parte para onde não se encaminhou o ímpeto da explosão.

Dentro do próprio castelo, sofreram ruína os “armazéns de outras provisões de guerra” e ainda duas torres que ficaram em pé, sofreram seu dano ficando descoberta uma que conservava em si alguns barris de pólvora, os quais não rebentaram. Também ficou isenta de estrago uma pequena capela que a devoção dos moradores desta vila tinha erigido a uma pintura do Padre Eterno, que se achou quando se demoliu a antiga Igreja que fora matriz desta vila e que depois foi, por alguns anos, ocupada pelos religiosos de S. Francisco. Esta imagem é muito venerada pelos frequentes prodígios que obra.

Ficaram também demolidas as casa da Câmara e a cadeia desta vila.

A fortificação sofreu seu dano, principalmente nas portas da Praça que, sendo fortíssimas, foram arrancadas como impulso da explosão. Tão activa foi ela que, estando três canhões desmontados e quase subterrados junto do reduto,2] arrancou dois do chão e arrojou-os para fora das muralhas. O mesmo sucedeu a dois morteiros que estavam junto da porta do castelo.

Mesmo à distância de quatro léguas se fez sentir o efeito da explosão, pois os moradores de Arronches e Albuquerque deram notícia de terem sentido, nessa hora, um extraordinário abalo nas suas casas.

Observou-se que, todas as boticas que há nesta vila, ficaram isentas de estrago, havendo mesmo algumas que não sofreram dano apesar de ter caído o tecto das casas em que estavam. Parece que o Céu, depois de dar o golpe para nossa emenda, teve providência em conservar ilesos os remédios para a cura. Assim se conjectura que, apesar de ter desembainhado a espada, não descarregou o seu golpe com toda a violência. Porque, sem tantos prodígios, não podiam tantos ter escapado com vida no meio da total ruína das suas casas. Apesar de ter havido famílias inteiras em que todos ficaram mortos, foi muito maior o número dos que saíram das mesmas ruínas sem qualquer lesão, causando admiração o modo como, sem advertência, evitaram o perigo.

Não se pode averiguar o número certo das pessoas que morreram nestas ruínas. Alguns estimam que tenham sido mais de duzentas. As de que temos certa notícia pelo distribuidor da Igreja, são as seguintes:

- Na Igreja Matriz enterraram-se 76 pessoas de comunhão e 28 crianças pequenas;

- No Convento de S. Francisco, 17 crianças pequenas;

- No Hospital de S. João de Deus, 6 soldados e uma criança pequena;

- Na Misericórdia, enterrou-se apenas o seu provedor Francisco Pires Cotão que foi a pessoa principal diante do Regimento de Cavalaria; e um sargento de Infantaria;

- Morreu também um religioso de S. João de Deus, chamado Frei José de Santa Catarina, sacerdote, confessor, a quem, partindo-lhe uma pedra a cabeça e lançando-lhe fora os miolos, não rompeu a túnica em que estavam metidos, de sorte que, pondo-lhos outro religioso no seu lugar e unindo-lhe a cabeça, ficou tão composto como se não tivesse lesão alguma; era religioso de vida exemplar;

- No Convento de S. Francisco morreram 3 dos monges que estavam orando no coro: o padre Frei Pedro de S. Boaventura, pregador, que logo ficou morto; o padre pregador Frei António das Chagas, que ainda pôde receber a extrema-unção; o padre confessor Frei António de S. Faustino, a quem uma pedra quebrou ambas as pernas e molestou de sorte que durou poucas horas. Ficaram gravemente feridos mais três religiosos da mesma comunidade;

- Morreu também o padre Domingos Gonçalves Pires, mestre de latim nesta vila, de idade de quase 70 anos, mas em todos de tão justificado procedimento que, desde menino, se não soube dele nem a mais leve verdura.

- E, fazendo-se reflexão sobre todas as pessoas que morreram, acha-se serem quase todas elas timoratas e de boa consciência. E, observou-se em especial que se achava coberto de cilício o corpo de uma bem morigerada donzela que morreu nesta desgraça.

Estes são os mortos de que se fez especial memória, mas, fora deles, se enterraram muitos outros, alguns pela piedade de seus parentes e amigos, de que se não pode saber o número certo, porque a mesma piedade que o fazia o ocultaria.

Sabe-se, contudo, (e pode este número acrescentar-se ao dos mortos) que, constando ao Doutor Juiz de Fora que passavam de 20 os mortos que, no segundo dia, estavam no hospital da vila e que os seus cadáveres tinham corrupção, os mandou conduzir e sepultar à sua custa, a cujo enterro assistiram clérigos castelhanos.

Além disso, teme-se que estejam alguns sepultados nas ruínas das suas casas, como sucedeu a uma menina de tenra idade, a qual, depois de 4 dias foi desenterrada, mas ainda viva e que ainda hoje existe.

Os mais gravemente feridos, que ainda hoje se estão curando, são 302, sendo incomparavelmente maior o número dos feridos leves que não chegaram às mãos do cirurgião e outros que procuraram remédio nas terras circunvizinhas, buscando amparo de parentes e amigos, cujo número, prudentemente, se conjectura chegar aos 2.000 3]  

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[1] Ambula – recipiente para guardar os santos óleos.

[2] Reduto – recinto fechado dentro de uma fortaleza que servia como último ponto de resistência. Por vezes é designado como o castelejo.

[3] Estêvão da Gama de Moura e Azevedo refere 256 mortos, entre pessoas grandes e pequenas e mais de dois mil feridos.Segundo o seu testemunho, a explosão provocou o desmoronamento de 836 das 1.076 moradas de casa que então existiam na vila.

 

 

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