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“AS SAIAS” E “A FÊRA D’ELVAS”

por Francisco Galego, em 20.09.16

Até meados do século XX, o São Mateus manteve viva esta manifestação da cultura popular tão característica do alto Alentejo: o “bailar e cantar as saias”. Com o desenvolvimento dos transportes motorizados e com as profundas transformações que se deram nas últimas décadas, no mundo rural, romarias como as do Senhor da Piedade e Feira do São Mateus em Elvas, sofreram também grandes modificações.

Noutros tempos este grande acontecimento anual, dava lugar a um intenso convívio, pois, os que vinham de fora, deslocavam-se em carroças ditas de canudo porque eram cobertas por uma protecção de forma cilíndrica, formada por uma estrutura de cana, coberta de uma tela de pano encerado, que protegia os passageiros da chuva e do sol. Com essas carroças, autênticos antepassados das actuais tendas, roulottes, e caravanas, formava-se um vasto acampamento no qual permaneciam, em alegre convívio, pessoas das mais variadas proveniências, algumas por cerca de uma semana. Aí se cozinhava e comia, aí se dormia, aí se cantava e dançava, sobretudo nas madrugadas, pois os bailes só podiam funcionar bem depois que se calava a algazarra dos altifalantes dos tendeiros e as potentes aparelhagens sonoras dos circos e carrosséis.

Para termos uma ideia da importância que esta grande manifestação de cultura popular tinha na transição do século XIX para o século XX, vejamos como decorriam as festividades segundo um texto escrito há mais de cem anos:

“Romaria espantosa aquela que o povo anónimo, principalmente, promove em louvor do Senhor Jesus da Piedade, de Elvas, em Setembro. Romaria inconfrontável de vibração de vida, de massa de gentes, de fervente fé, de acrisolado e ingénuo cristianismo.

            (…) Inunda-se de lés a lés o parque da Piedade. (…) dentro da igreja asfixia-se. Pela escadaria lateral que conduz á casa dos milagres, há um subir e descer constante. São os devotos que ali vão entregar as suas oferendas prometidas por bondade desinteressada ou por via do milagre de Jesus. As paredes desta casa estão pejadas de ofertas: pernas e braços de cera adornados por lacinhos de seda; quadros grotescos, de proporções desequilibradas; fotografias com extensas dedicatórias e limitadas por mirabolantes molduras em madeira ou em tecidos. A tudo acode o Senhor Jesus da Piedade, nos momentos aflitivos: um lobo que ataca um pobre pastor ou viandante; um cão raivoso que procura morder quem passa; aquele que caiu de um andaime à rua; outro que involuntariamente se precipitou de uma ponte ao rio; este que ficou sob a roda de uma carro carregado de trigo; aqueles que estiveram gravemente doentes durante meses, etc. etc.

            (…) Cá fora a atmosfera é densa, da poeira levantada pelos que caminham, se acotovelam, centenas de carros alentejanos, de toldo abaulado, puxados por parelhas de guiseiras barulhentas e cabresto garridos, invadem uma parte do parque, para ali permanecerem durante dois dias, despejando milhares e milhares de festeiros ou romeiros, de Borba, de Vila Viçosa, de Estremoz, de Vila Boim, de Arronches e de Campo Maior. E centenas e centenas de criaturas vêm com os pendões de Varche e de Ana Loura, em cerimonial cauteloso. Bandas e filarmónicas atroam os ares com o sempre agradável hino da Piedade (…) Os comboios vomitam gente de Portalegre, do Crato, de Niza, de Gafete, de Tolosa, de Assumar, de Santa Eulália e, por bandas de Espanha, Badajoz.

            Insuficiente o vasto campo da Piedade para comportar a multidão, magotes deslocam-se para o Rocio, onde a feira de S. Mateus tem lugar. Pela tarde o Rocio e a Piedade são aluviões de pic-nics, são farnéis abundantes que se estendem e se vão devorando por entre uma alegria comunicativa comum, ideal e só perfeita, naquele fugidio momento.

            Pululam os trajes vistosos de camponeses e camponesas, moços cheios de vivacidade, moças sadias e alegres. Estralejam incessantemente os foguetes.”[1]

 

 In, Francisco Pereira Galego – Cantar e Bailar as Saias. Lisboa. 2006  

 

[1] .Paiva, Jerónimo M.S. (1927). “Do Alto Alentejo – Descritivos e factos de há trinta anos” – Beja.Págs. 18 e 19

.

 

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