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Variações sobre tempos idos

por Francisco Galego, em 04.02.07
Tanto os leitores como eu estamos um pouco cansados de tanta História. Para descansarmos um pouco, permitam-me que, escrevendo esta crónica, vos diga alguma coisa da minha própria história.
            Nasci em 1 de Agosto de 1941. Fiz há seis meses 65 anos. Entrei na chamada terceira idade da vida. Sou, portanto, a partir de agora, oficialmente, um velho. Estou a tentar aprender a sê-lo com a dignidade que me for possível. Não sinto qualquer angústia, nem a ideia de uma aproximação da morte me provoca medo ou sobressalto. Encaro-a como a coisa natural e certa. Até aqui a vida tem cuidado razoavelmente de mim. Não me apaparicou, mas também não me atormentou com inquietações de monta. Pedi-lhe pouco e ela foi-me dando o necessário para ir vivendo sem ter atormentadas razões de queixa.
 Desde muito cedo fiz a opção essencial que, de forma mais ou menos consciente, todos fazemos a partir de dado momento. Ao prazer preferi o sossego. Preferi o ir sendo razoavelmente, ao muito pretender para muito ter. Entre o servir-me e o compromisso de bem cumprir, escolhi o que me parecia ser o meu dever. De plena consciência, compreendi que não podia aspirar a grandes realizações e a espectaculares sucessos. Pareceu-me mais justo e adequado renunciar a grandes ilusões.
Um destino de aurea mediocritas pareceu-me ser uma possibilidade aceitável para que nasceu com tão poucas condições para muito aspirar. Pior seria a procura insana de uma improvável celebridade. Não tendo a propensão dos grandes sentimentos, preferi os afectos acessíveis, às inatingíveis paixões. Não escolhendo percorrer as vias que me levassem à riqueza, fui conseguindo o que me era indispensável para não sofrer de grandes carências. Para quem foi tão prudente nas suas aspirações, até que acabei por conseguir alcançar bastante. Para ir mais longe, só com um grande rasgo de sorte.
Chego a este patamar da minha existência e posso pensar e sentir que, até ao momento, o projecto concebido e executado pode ser avaliado positivamente. Sei que não depende completamente de mim que assim persista até ao momento final. Mas, enquanto tiver discernimento, procurarei agir para que continue desta feição, este trajecto que vai sendo a minha vida. Não lamento o que não fui e procuro não contabilizar como falhanço não ter alcançado o que não tenho. Porque, a maior parte das coisas que não consegui, foi porque as não desejei. E se outras não logrei foi porque tinha a clara consciência de que não tinha condições para lá chegar.
Esta é a avaliação que penso dever fazer neste início desta idade terceira e a que me parece a mais adequada ao projecto que me foi possível traçar como opção de viver. Porque, passou o tempo de ambicionar. É tempo de deitar contas ao que foi possível fazer.
Seria completamente descabida qualquer pretensão de recomeço. Nem estou zangado com a vida, nem decepcionado com o que da minha vida consegui fazer. Não terei sido excepcional pelo sucesso. Mas, e isso é muito mais importante que os tolos podem conceber, também não devo contar com um balanço final de falhanço. Não tive momentos de exuberante felicidade. Mas, também não conheci o desespero irremediável dos grandes sofrimentos.
Nunca me senti glorificado pela fama. Mas fui premiado com a consideração da grande maioria dos que me foram conhecendo. Posso dizer neste momento: Vivi razoavelmente a vida que me foi possível ir vivendo. Se ainda tiver que me atormentar com inesperados sofrimentos, fica aqui a confissão do balanço positivo que me sinto obrigado a fazer neste momento.
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Nasci nesta vila do Alto Alentejo, mesmo encostada à fronteira, que se chama Campo Maior. Embora colocada num recanto, afastada de vias importantes de passagem, foi, no passado, povoação de considerável importância militar, económica e demográfica. A presença num ponto bastante frágil, em termos de estratégia de defesa, constituiu-a como importante praça de guerra enquanto existiu o perigo de invasões a partir do território do poderoso vizinho que fica do outro lado. Mas a fronteira teve também efeitos positivos em termos económicos. O contrabando foi sempre fonte de consideráveis rendimentos e houve mesmo épocas em que se tornou fonte de fácil e rápido enriquecimento.
 Sendo de pouca extensão, o concelho, pela variedade das terras que o compõem, sustentou uma agricultura próspera em tempos em que predominava uma economia de subsistência, em regime de quase total autarcia. Foi o café, produto essencial do contrabando depois da guerra civil de Espanha, que lançou as bases da economia campomaiorense na actualidade. Do contrabando veio a acumulação de capitais que gerou a produção que, actualmente, constitui a base da sua prosperidade: a torrefacção de cafés.
            Nasci numa rua modesta como modesta foi a minha origem familiar: os meus quatro avós e as duas bisavós que ainda conheci, estavam ainda muito envolvidos na sua condição campesina. Os avós maternos vinham directamente de gente secularmente ligada ao trabalho nos campos. A mãe da minha mãe, minha avó Maria Catarina Cainço, descendia de uma família de camponeses naturais e residentes na pequena aldeia de Degolados, muito próxima de Campo Maior e que, à época do seu nascimento, estava administrativamente ligada ao concelho de Arronches. Esta minha avó veio com seus pais residir num monte em Campo Maior, onde conheceu o jornaleiro Jacinto de Jesus, natural de Elvas, freguesia de S. Pedro. Do casamento de minha avó Maria com o meu avô Jacinto, nasceram12 filhos, dos quais, como era muito usual entre a gente pobre, devido às doenças epidémicas que grassavam por aquele tempo, mormente a pneumónica, apenas sobreviveram quatro filhas: Palmira, minha mãe, era a mais velha, seguindo-se Mariana, Alice e Ana Maria. O meu avô Jacinto era, em toda a família da parte de minha mãe, o único que tinha frequentado regularmente a escola e que, por conseguir escrever e ler razoavelmente, largou a enxada ingressando na Guarda Nacional Republicana. Minha mãe, por vontade e esforço pessoal conseguiu tornar-se modestamente letrada.
Da parte de meu pai, os meus avós eram gente já bastante desligada do trabalho agrícola. Minha avó Ana do Carmo Serra era, como as duas gerações anteriores na sua família, basicamente uma contrabandista, actividade que, na nossa terra, como bem sabem todos os meus conterrâneos, era tão digna como qualquer outra e que só podia ser exercida por gente de coragem e de grande seriedade. Aliás, aqui na raia de Espanha, todos éramos um pouco contrabandistas e o contrabando gerou sólidas fortunas, tanto no domínio da agricultura, com no campo das indústrias.
Tal como minha avó, também meu avô, Francisco Martins Galego, fazia do contrabando a sua principal ocupação, se bem que este tivesse sido arrastado para esta actividade pelo casamento com minha avó Ana – os seus irmãos eram, na sua maioria, gente ainda ligada ao trabalho nos campos.
 Embora analfabetos, os meus avós paternos cuidaram de escolarizar os seus dois filhos varões: meu pai, José e meu tio Francisco; de minha tia Maria foi entendido por meus avós que, sendo rapariga, não necessitaria de tal investimento.
Minha mãe, sendo a primogénita dos filhos sobreviventes, aprendeu o ofício de costureira de alfaiate, ou seja, de vestuário masculino. Meu pai que tinha mais dois irmãos, minha tia Maria mais velha dois anos e meu tio Francisco mais novo cinco anos, nunca aceitou o destino de contrabandista que o fatum familiar lhe parecia traçar – o risco e a incerteza desse tipo de vida, não quadravam com a timidez e a ânsia de segurança que lhe moldavam o feitio. Por isso, desde muito cedo, foi destinado ao comércio. Daí que, depois de um longo aprendizado de mais de seis anos em loja alheia, pôde, com o apoio dos pais, estabelecer-se por conta própria pouco antes de casar e de eu ter nascido.
            A rua onde nasci era modesta, encostada às muralhas que ainda limitavam o perímetro da vila em muitos pontos. Ficava, contudo, entre as casas dos meus avós, quase a igual distância de ambas, o que foi estrategicamente muito importante no quadro do mapa dos meus afectos. Subindo a rua chegava a casa de minha avó Ana. Descendo-a e virando a esquina, chegava a casa de minha avó Maria. Entre o tesouro de afectos que encontrava numa e a largueza de recursos que outra me propiciava, a minha infância decorreu de forma muito favorável. De certo modo, não sentia falta de quem me apaparicasse: era filho único, sobrinho único, neto e bisneto único de um grupo considerável de gente.
Nessa época, havia apenas dois primos – A Ana Rita e o Chico, filhos de Maria, irmã de meu pai – mas ambos, por razões diferentes, estavam afastados, enquanto eu estava constantemente próximo e presente. Assim, sem ninguém a disputar-me carinhos, a vida só podia correr-me facilmente. A própria vizinhança desenvolvia laços de grande familiaridade o que alargava ainda mais o extenso mapa dos meus afectos de criança.

Campo Maior, 24 de Janeiro de 2007

(publicado em Região em Notícias - Campo Maior, em 2 de Fevereiro de 2007)

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publicado às 15:12


2 comentários

De Francisco Galego a 09.05.2016 às 13:56

Em primeiro lugar, peço desculpa por só agora responder.
A única razão: Não ter visto o comentário por andar muito ocupado na conclusão do meu próximo livro, como os anteriores, sobre história de Campo Maior.
O nosso grau de parentesco, resulta de sermos netos de dois irmãos. Eu de Maria Catarina Durão Cainço, o senhor de Joaquim Durão Cainço.
Este ramo da nossa família teve as suas origens na freguesia de Nª S.ª de Degolados que, até 1926, pertenceu ao concelho de Arronches e só então agregada ao concelho de Campo Maior, por pressão da própria população.
Originalmente, era uma família medianamente remediada de agricultores, mas os desmandos de um dos irmãos em jogos de azar, perdeu os bens próprios, passando por isso a ter de subsistir por trabalho em condições de maior dificuldade que obrigaram a virem residir em Campo Maior. Eram cinco irmãos: duas senhoras (Maria e Iria) e três homens (Joaquim, Manuel e António). Seguiram destinos diversos. O seu avô teve o seu muito marcado por ter sido combatente na guerra de 14/18, pois foi graduado no posto de tenente, daí ter sido conhecido como o Tenente Cainço. O ter casado com a filha de um médio proprietário, sua avó Mariana Dentes Cainço, permitiu-lhe significativa ascensão social que se deveu também às suas próprias aptidões que lhe permitiram chegar a ter sido administrador do Concelho. Mas, coisas do tempo em que tal acontecia, isso afastou-o da sua própria família. Coisa que provocava um visível desgosto em minha avó que, por ser a mais velha, tivera grande importância na criação desse irmão. Eu ainda assisti e presenciei essa situação.
Aqui tem, brevemente, alguns dados sobre as nossas origens.
Sempre ao dispor.
Francisco Pereira Galego
Agradeci que desse sinal de ter recebido

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