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CANTIGAS AO DESAFIO XIV

por Francisco Galego, em 31.03.12

Muitas destas cantigas de escarnecer tomavam a forma de cantar ao desafio. Embora o desafio fosse, quase sempre, uma forma de namorados dialogarem ou de dois homens esgrimirem a sua habilidade de cantadores.

Um exemplo contado pelos mais antigos, é o deste caso de despique entre homem e mulher, que começa com meias palavras e subentendidos e acaba com ditos e palavras bastante desbragadas:

 

 

- Estes rapazes d’agora,

Todos postos em fileira;

Parecem novilhos bravos,

Quando vão p’ra sementeira.

 

- Usas cabelo enrolado,

Tens corpo de bailarina;

Se eu sou novilho bravo,

Tu és a vaca torina.

 

- Cala-te aí piolhoso,

Segue a tua triste sorte;

Que nos pegas os piolhos,

Se o vento virar p’ra norte.

 

- Chamaste-me piolhoso,

Será porque já os viste;

Foste tu que mos pegaste,

Quando comigo dormiste.

 

Por vezes, numa simples quadra fazia-se a mais certeira e cruel das caricaturas. Estas que se seguem, tudo indica poderem remontar ao século XIX, pois, algumas delas, ridicularizam figuras muito populares em Campo Maior naquele tempo:

 

Uma velha muito velha,

Mais velha que o Catapum,

Punha-se a catar cagáteas,

Na regadeira do cú.

 

Todos falam no Conrau,

E é caso p’ra se falar,

Deixou a enxada em casa,

Sabendo que ia cavar. [1]

 

A mulher do Ti’Borlinhas,[2]

Esteve todo o dia ao sol;

Apanhando caganitas,

Julgando qu’era cerol.

 

Chamaste-me coça o cu,

À porta da rapariga;

Fiquei sendo o coça o cu,

P’ro resto da minha vida.

 

Chamaste-me pouca roupa,

Tu tens muita, é teu proveito;

Menos tenho que despir,

À noite quando me deito.

                                                       

 

Pus-me a cagar de joelhos,

P’ra não sujar o capote;

Escorreguei, caí de caras,

Fiquei c’um grande bigote.

 

Mas que lindos olhos tem,

Aquela “filha da puta”;

Os peitos são melancias,

Tudo o resto é boa fruta.[3]

 

 

Alto lá, tenha lá mão,

Que ninguém o escandaliza;

Toda a sua geração,

Alça a perna quando mija.

 

Relevemos a crueza da linguagem utilizada em algumas destas composições, procurando compreender que estas situações se inseriam num tempo em que, a maioria dos portugueses, viviam ainda em pequenas comunidades, muito isoladas e, por isso, quase auto-suficientes, sendo a sua população, na quase totalidade, constituída por gente de pouca ilustração, que trabalhava a terra e dela tirava o seu sustento. Nessa época a educação escolar era privilégio de uma escassa minoria.

Por outro lado, nesses povoados essencialmente rurais fossem eles cidades, vilas ou aldeias, quase todos se conheciam. Entre eles o grau de intimidade e de liberdade de expressão poderia ser muito grande, permitindo abusos de linguagem inadmissíveis noutros estratos sociais.

A sociedade estava compartimentada de forma de tal modo estanque que, entre os diversos estratos quase não havia comunicação. As elites locais, mais endinheiradas e mais instruídas, muito reduzidas em número, viviam completamente à margem do povo, ignorando e desprezando qualquer manifestação da sua cultura e das suas tradições. Isso fica bem documentado quando procuramos recolher informações em documentos escritos: as informações são escassas nos livros e nos jornais. A cultura escrita era feita pelos senhores, sobre os senhores e para os senhores.

O povo, que não sabia ler, produzia uma cultura basicamente oral. Daí que, para a estudarmos, temos que recorrer a testemunhos orais, os únicos vestígios que restam da antiga cultura popular. São raras as obras escritas que se dedicaram ao seu estudo e preservação, embora algumas delas sejam verdadeiramente geniais, como as obras de carácter etnográfico, sobretudo os cancioneiros populares, de José Leite de Vasconcelos (1858-1941) e, a nível mais regional, a monumental recolha e compilação feita pelo elvense António Thomaz Pires (1850-1913), que chegou a publicar mais de 10 mil quadras populares. No jornal A Sentinella da Fronteira que existiu em Elvas entre 1881 e 1891, publicou cerca de um milhar de quadras recolhidas no Alto Alentejo. Essa publicação aparecia titulada como – Poesia Popular Portugueza – Cantos Populares do Alemtejo – Recolhidos da tradição oral por António Thomaz Pires.



[1] Esta cantiga é da autoria do poeta popular campomaiorense Joaquim António Mota, que viveu no século XIX, cuja biografia feita por João Pessoa foi publicada em 1957 no jornal eborense Democracia do Sul, sob o titulo “Campo Maior – Galeria de Figuras nº XXII”.

[2] O Ti’Borlinhas tinha um comércio e uma oficina de sapateiro aos Cantos de Baixo na duas primeiras portas da “rua das Pereiras”, no prédio que fazia esquina com a “rua de Ramires”.

[3] Numa carta de Aníbal Fernandes Tomás para António Tomás Pires, datada de Lisboa, 15 de Novembro de 1906, está transcrita uma quadra muito semelhante:

                                                               Ó que lindos olhos tendes,

                                                               Olhem a filha da puta;

                                                               Com melancias no peito,

                                                               Dizendo: Quem compra fruta?

 

 


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publicado às 18:50


CANTIGAS AO DESAFIO XV

por Francisco Galego, em 25.03.12

Intitulo este caso que me foi contado por um homem de avançada idade e que se torna interessante pela graça da situação e pela maneira como retrata a vida na vila de Campo Maior, há cerca de meio século atrás, como – “ O Barbudo, o Pelado e o Pego sem Fundo”:

 

               Em tempos idos, talvez na década de quarenta, num dia de Verão, três raparigas, jovens adolescentes, foram lavar a roupa da semana ao rio Caia, como era uso na época.

               Finda a tarefa que ali as levara, aproveitaram para também tomarem um banho e mudarem de roupa. Enquanto o faziam, e numa brincadeira própria da sua idade, julgando não haver por perto ninguém que as pudesse observar, começaram a fazer comparações entre as suas partes pudibundas, apelidando-as em termos mais ou menos jocosos:

               - Olha a minha! Que farta cabeleira! Parece o Barbudo! Dizia uma.

               - A minha é o Pelado! Disse a outra, constatando a escassez de adereços pilosos.

               - Pois a minha parece um Pego sem Fundo, disse a terceira, dando com isso sinais de secretos desejos.

               Entretanto, um rapaz que por ali mourejava tinha-se aproximado escondidamente e, ocultado numa moita de arbustos, seguia gulosamente toda aquela ingénua e divertida situação.

               As raparigas regressaram a suas casas convencidas de que ninguém as teria visto e ouvido. O rapaz não falou do caso a ninguém.

Algum tempo depois, num domingo, como era da tradição um grupo de rapazes e raparigas juntaram-se e organizaram um bailarico na rua, cantando e dançando as tradicionais “saias”. No grupo estavam as três raparigas e o rapaz que as observara na dita cena do rio. Em dado momento, o indiscreto observador do virginal banho, dando largas à sua veia poética, cantou a seguinte quadra:


Deus me livre do Pelado,

Deus m’acuda com o Barbudo,

Se me chegar a afogar,

Seja no Pego sem Fundo.

 

As raparigas logo entenderam o recado e perceberam o que se tinha passado. Prontamente, a mais expedita respondeu:

 

É verdade, sim senhor,

Tudo isso aconteceu;

Esteve ao pé de três almoços

E nenhum deles comeu.”

 

A história é contada como verdadeira e não custa aceitar que o fosse, pois assim era a capacidade de improvisão poética e do repentismo dos campomaiorenses quando se tratava de cantar as “saias”.

 

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publicado às 08:30


CANTIGAS AO DESAFIO XIII

por Francisco Galego, em 19.03.12

Nas cantigas de escarnecer caía-se por vezes na desmedida, quando se passava para o lado da ofensa e da ordinarice. Embora bastante raras, algumas das quadras deste tipo geravam grandes ressentimentos e confrontações que acabavam em violentos conflitos chegando a vias de facto, com agressões físicas, quase sempre envolvendo grupos pois, como em todos os tempos, os jovens tendiam a associar-se em bandos ou maltas de camaradagem. Como seria de esperar, neste tipo de cantigas, a linguagem tornava-se, por vezes, desbragada. Mas, se quisermos usar de alguma complacência, teremos que reconhecer que, afinal, a linguagem que utilizavam não era nem menos nem mais escabrosa do que a que foi utilizada por grandes vultos da literatura portuguesa como, por exemplo, Gil Vicente ou Bocage, para citar apenas dois dos mais conhecidos.

 

 Muitas destas cantigas tomavam a forma de cantar ao desafio. Embora o desafio fosse, quase sempre, uma forma de namorados dialogarem ou de dois homens esgrimirem a sua habilidade de cantadores, nem sempre o desafio era bem comportado e decorria de forma tão idílica. Por vezes transformava-se numa disputa com cantigas de escarnecer. Alguns reptos e respostas tinham apenas como intenção provocar o riso. Mas, noutras vezes, as coisas iam mais adiante dando origem a situações intoleráveis. O vinho que escorria em demasia pelas gargantas, o ressentimento, o despeito e a rivalidade, motivavam intervenções que, atravessando a fronteira dos bons modos e do bom gosto, se tornavam actos de ofensas pessoais e se traduziam em atitudes de grande grosseria. Não terão sido poucos os desafios que resultaram em enormes confusões porque o descante descambava para violentas cantigas de escárnio e maldizer.

Vejamos este exemplo que remonta aos finais do século XIX e em que, na Feira de São Mateus, um homem se chega ao baile e canta para a roda:

 

Sete anos fui casado,

Sete mulheres conheci;

Graças a Deus para sempre,

Estou virgem como nasci.

 

A pronta resposta de uma rapariga embasbacou o ingénuo cantador, rematando desde logo o desafio:

 

Ao Senhor da Piedade,

Estou bradando por justiça;

Porque, ou você não é homem,

Ou então não tem nabiça.

 

Esta situação documenta como algumas destas situações davam azo a respostas repentistas que correriam de terra em terra como divertidas anedotas.

 

Nesta outra, que é muito conhecida, um grupo de jovens terá chegado a uma festa numa aldeia vizinha e tomado generosamente uns copos de bebida. Chegados ao baile, um deles alçou a voz e lançou:

 

Um copinho, dois copinhos,

Três copinhos d’aguardente;

As mocinhas desta aldeia,

Fazem um homem bem quente.

 

Respostas imediata de um da terra:

 

Um copinho, dois copinhos,

Três copinhos de licor;

Levas um murro nos cornos,

Passa-te logo o calor.

 

 

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publicado às 18:11


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